Eu me vi perdendo a minha filha simplesmente por ser negra e ela não;, disse Jamille Edaes, de 22 anos, ao denunciar ter sido vítima de racismo ao mesmo tempo em que uma mulher tentava roubar-lhe o bebê em uma parada de ônibus na BR-381 em Perdões, no Centro-Oeste de Minas, na noite de segunda-feira. Jamille, que é negra, contou ter sido acusada por funcionários do estabelecimento de ser ;sequestradora; da própria filha, de 1 ano e 5 meses, que tem a pele branca. Só não a perdeu porque levava todos os seus documentos na bolsa e ainda um vídeo do parto no celular. Ela registrou ontem um boletim de ocorrência sobre o episódio ;desesperador;. Segundo a Polícia Civil, o caso será investigado pela Delegacia de Rio Vermelho, próxima de onde ocorreu o crime, e o teor do depoimento da vítima não será divulgado.
[SAIBAMAIS]De acordo com a Jamille, ela passou o fim de semana com o marido, que mora na capital paulista, e embarcou para retornar a Belo Horizonte na noite de segunda-feira. Após quatro horas de viagem, o ônibus parou em Perdões e ela desceu com o bebê para lanchar. ;Foi então que entrei no banheiro e uma moça deu a mão para a minha filha e começou a brincar. M. é uma criança muita tranquila, todo mundo brinca com ela e não me importei. Mas, de repente, a mulher começou a gritar: ;Essa filha é minha!’;, contou a vítima. Assustada, ela pegou a menina no colo.
Foi naquele momento, sustenta Jamille, que uma faxineira da lanchonete perguntou à outra mulher, que tem cerca de 30 anos: ;Essa preta aí pegou sua filha?; ;Foi quando todos questionaram se eu era mesmo mãe da criança;, afirma Jamille. Ela conta que a mulher que tentou sequestrar M. tinha em mãos uma certidão de nascimento de uma menina chamada Jéssica, que teria 1 ano e 8 meses. Nesse momento, relata, a mulher continuou a gritar que M. era filha dela e acusou Jamille de sequestradora. ;A faxineira puxou M. do meu colo e a entregou para a mulher. Ela disse que M. jamais poderia ser minha filha porque ela é branca e eu sou negra;, afirmou. Segundo Jamille, outros três funcionários da lanchonete ; duas mulheres e um homem ; ajudaram a arrancá-la do seu colo. A mulher teria chegado a colocar a criança dentro do carro e a posicionado em uma cadeirinha de bebê.
;Eu fiquei muito apavorada e não sabia como provar o contrário. O motorista do ônibus me perguntou como eu havia conseguido embarcar com ela e me lembrei que o RG e o CPF estavam em minha bolsa;, contou Jamille. Segundo Jamille, foi preciso mostrar para várias pessoas todos os documentos, além de um vídeo do parto que estava no seu celular para provar que a criança é sua filha e conseguir que a ajudassem a resgatá-la. Ela diz que tentou registrar uma ocorrência imediatamente e denunciar a discriminação racial e a tentativa de sequestro. ;Quando todos acreditaram em mim, o motorista disse que não poderia me esperar. Estava tão apavorada e com medo que fui embora;, contou. Ao tentar registrar a ocorrência na rodoviária, mais um problema. ;Eles (policiais) zombaram de mim e disseram que era impossível sem os dados da mulher. Eu não tinha nem o nome dela;. A ocorrência só foi finalmente registrada na Delegacia da Mulher de Betim.
O marido de Jamille, Roberto Edaes, de 25, diz que o caso expõe o racismo que há no país. "Infelizmente não será a primeira vez nem a última que ocorrerá esse tipo de situação. Aquelas histórias absurdas que nossos pais nos contam acontecem de verdade. Como dizia Renato Russo, vivemos em um mundo doente;, diz.
Ele considera inclusive que as pessoas podem ter agido dessa forma porque se tratava de uma mulher. "Se fosse com um homem negro e a filha branca também haveria esse mesmo questionamento? Precisamos debater isso, precisamos ficar atentos;, completou.
ESTRUTURAL
;A suspeita da maternidade é apenas um fragmento das recorrentes cenas de racismo e discriminação racial que ocorrem cotidianamente no Brasil. Os últimos censos apontam que os casamentos interraciais, por exemplo, entre negros (autodeclarados pretos e pardos) e brancos não são tão comuns quanto nos parece. Herança do racismo, negros e negras quando têm filhos e filhas fenotipicamente brancos são tratados como ;cuidadores e cuidadoras; dessas preciosidades;, afirma Aline Neves, militante negra, professora da Educação Básica e Pesquisadora do Programa Ações Afirmativas na UFMG. ;Na escola, no restaurante, no parquinho, em inúmeros lugares, estará a mulher negra colocada em suspeita;, diz.
Para a especialista, o ocorrido com Jamille Edaes apresenta dois fragmentos de sofrimento para a mulher: o risco de se perder um filho e a ofensa racial, devido a difenreça genética entre amabas. "Não é difícil imaginar o medo de nome da vítima diante do risco de ter a filha roubada. Entre os dois corpos em luta pelo direito da criança, e a fragilidade do discurso de uma mulher negra, cuja filha não tem o mesmo fenótipo que o dela, está o racismo para definição da maternidade. Como pode uma mulher negra ter uma filha branca? O imaginário não nos permite aproximações, pois até mesmo a beleza é hierarquizada, os sentimentos são hierarquizados e tudo segue a favor desta mulher branca. A humilhação em ter que provar a que filha é sua, nome da vítima, é semelhante aqueles que têm seus filhos apartados de si pelo fato da vulnerabilidade, em especial em Belo Horizonte ; mães órfãs."
Segundo o cientista-social Robson Sávio, integrante do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da Pontifícia Universidade Católica (PUC Minas) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é preciso uma investigação apurada, atenta aos perigos da rodovia. ;É preciso analisar se trata-se de uma situação pontual ou se essa mulher que teria tentando sequestrar a criança faz parte de uma quadrilha. Outra opção é que ela tenha princípios fascistas, que acredite na supremacia branca e ache que tirar aquela criança de um berço negro seria um ;favor; para ela;, disse.
Ele pondera que as estradas se tornam locais propícios para esse tipo de crime, devido à falta de articulação entre policias. ;Falta uma articulação entre as polícias Federal, estaduais e rodoviárias militares. Além do tráfico de pessoas, o de drogas e o de armas são constantes;, afirma. E mais: Todas as dificuldades enfrentadas pela vítima para conseguir registrar um boletim de ocorrência também desencorajam as pessoas a fazer o mesmo, comenta.