Brasil

Bebê doado em caixa de sapato virou juiz em João Pessoa, na Paraíba

Abrigado por uma dona de casa e um policial militar, José conta sua história para estimular jovens

Marcionila Teixeira/Diário de Pernambuco
postado em 27/02/2018 09:17
O juiz costuma ser chamado pelo Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco (TRE-PE) para contar sua trajetória nas palestras do Programa Eleitor do Futuro
Era uma pequena caixa de sapato. Dentro, havia um menino com poucos dias de vida. A mãe segurava firme a acomodação improvisada e oferecia a criança a quem passava. Aquele foi o último encontro entre ela e o filho. No mesmo dia, o bebê foi entregue a uma desconhecida. A doação aconteceu em uma praça, no centro de João Pessoa, na Paraíba. Daquele dia em diante, o bebê recebeu abrigo, alimento, educação e amor de uma outra família. José Fernando Souza gosta de contar essa história em suas andanças. Ele é a criança da tal caixa de sapato. Está hoje com 58 anos. Tornou-se juiz.

José Fernando foi o único filho de uma dona de casa e de um policial militar, hoje falecidos. Não teve fartura material em casa. Mas lembra da dedicação e do carinho dos pais que lhe abrigaram. E isso faz toda a diferença para qualquer criança, defende. O juiz costuma ser chamado pelo Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco (TRE-PE) para contar sua trajetória nas palestras do Programa Eleitor do Futuro, uma iniciativa cujo objetivo é abordar junto a estudantes de escolas públicas temas como a história do voto no Brasil, a participação cidadã e a formação de um jovem crítico. ;Na palestra, coloco a história da caixa de sapato como se não fosse a minha história. Relato o caso de uma senhora que vem do interior da Paraíba e vai morar na capital. Ela, muito pobre e sem o marido, que tinha ido para São Paulo, engravidou de um homem casado. No final, conto que eu sou a criança entregue para adoção.;
A ideia de José Fernando é propagar o que ele chama de estímulo a jovens sem muita perspectiva de futuro diante das dificuldades impostas pela pobreza. ;Se eu, que fui pego em uma caixa de sapato na rua, consegui superar os obstáculos da vida e cheguei a juiz, muitos jovens também conseguem se tiverem um objetivo. Tudo o que meus pais me dedicaram foi fundamental. Mesmo pobres, oportunizaram para mim tudo o que estava ao alcance deles. Sempre senti muito amor deles.;

Antes de tornar-se juiz da Infância e Juventude de Caruaru, onde mora hoje, José Fernando foi juiz da Vara da Fazenda, na mesma cidade, e analista judiciário no Tribunal Regional do Trabalho da Paraíba. Quando veio morar em Pernambuco, tinha 34 anos e já estava casado com Maria de Lurdes Ferreira, com quem teve três filhos, dois advogados e uma médica.

José Fernando não voltou a encontrar a mãe biológica. Nunca sentiu vontade. Nem mesmo mágoa. ;Como ter raiva de alguém que não te matou, não te jogou no rio, ficou ali nove meses contigo na barriga, teve as dores do parto, pariu e deu para alguém criar? Ela se viu grávida de um homem casado, não podia voltar para o interior naquelas condições. Era década de 1960. Seria apedrejada em praça pública.;
Hoje, as mães que, por algum motivo, não desejam exercer a maternidade de uma criança podem entregar o bebê nas Varas da Infância dos municípios onde moram sem serem criminalizadas pelo ato. O abandono em via pública, no entanto, é crime. Onde atua, José Fernando encontra histórias parecidas com a sua. Na semana passada, participou de mais uma audiência envolvendo uma mulher que entregou o filho para adoção. ;Se a pessoa nos procura espontaneamente, é recebida. A única coisa que posso esperar é que apareça alguém bem intencionado para levar a criança para casa. Eu sou um grande incentivador da adoção.;

José Fernando ainda tem três anos de magistratura pela frente. Diz que deseja continuar fazendo algo valioso para o próximo. A Vara da Infância e Juventude, diz ele, tem sido o canal para atingir seu objetivo. ;É uma porta que Deus me oportunizou. Como juiz da Fazenda, vivia confortável, sem enfrentar qualquer tipo de problema social. De repente, tudo mudou;, lembra. Porque a felicidade e a realização nem sempre fazem morada onde parece óbvio.

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