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Mayara Amaral: Correio relembra história de jovem morta em Campo Grande

No terceiro capítulo da série sobre feminicídio, a reportagem do Correio refaz os últimos passos de uma violonista de 27 anos assassinada em um motel de Campo Grande. Sem chances de defesa, ela ainda teve o corpo queimado

Ingrid Soares
postado em 06/03/2018 06:00
[FOTO1] Um pedaço do pé e uma das mãos. Foi tudo o que identificaria a violonista Mayara Amaral, 27 anos, após ela ser assassinada em um motel por Luís na madrugada do dia 25 de julho 2017. A data não é nem o início tampouco o final do caso. Para a família, resta a menina morta de forma covarde. Para a Justiça, sobra o debate sobre as penas de autores de crimes de feminicídio no país.

Nascida em Sete Quedas, no Mato Grosso do Sul, Mayara era a caçula entre quatro irmãos. Ela se formou em licenciatura em Música pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), em 2010, e fez mestrado na Universidade Federal de Goiás (UFG), concluído em março do ano passado. Envolvida em questões e lutas feministas, teve como tema do trabalho de conclusão do curso as mulheres compositoras da década de 1970.

Depois do mestrado em Goiânia, Mayara voltou a Campo Grande, onde era professora de música da rede municipal de ensino na capital do Mato Grosso do Sul. De férias, estudava para um doutorado na Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp. Quando a garota foi morta, a irmã, Pauliane Amaral, 30 anos, estava na Bélgica. Estuda francês. Ela conta que Mayara havia acabado de sair de um casamento que durou oito anos, não queria se envolver emocionalmente com ninguém.

;Ela não chegou a falar dele (Luís) para mim. Mas contou para mamãe, chegou mesmo a dar algumas características. Disse o primeiro nome, que tinha o olho claro, que era inteligente, e se mostrava uma pessoa dócil;, disse Pauliane ao Correio. Graças a essas poucas características, a polícia conseguiu identificar o assassino.

A amiga Joseane Paganini, 24 anos, que dividia a casa com Mayara e outras duas garotas, aceitou falar pela primeira vez com uma equipe de reportagem após a tragédia. Ela conta que não conheceu Luís pessoalmente, mas que a amiga comentava sobre ele. ;Ela me disse que ele era músico. Contou que ele tinha um problema de drogas, mas que não era má pessoa. Ela queria ajudá-lo.;

Mayara era dedicada à música. Passava a tarde estudando na sala de estar. ;É uma das coisas que mais sinto saudades, de ouvi-la tocar;, lembrou Joseane.

Um dia antes do assassinato, Mayara tinha combinado de tocar, à noite, numa missa na igreja do centro da capital, mas não apareceu. ;Achei estranho e, assim que saí de lá, liguei para a mãe dela. Ela saiu na tarde de segunda-feira com uma calça jeans, um all star branco e uma camiseta verde que compramos na semana anterior. Saiu também com todas as coisas dela, violão, caixa de amplificador, notebook. Até brinquei que ela estava levando a casa inteira;, lembra.

; Onde você vai?
; Vou ensaiar.
; Volta ainda hoje?
; Não sei.

As amigas se despediram e essa foi a última conversa que tiveram.

;Quando cheguei da missa, falei com a mãe, depois tentei contato com a banda, mas a mãe me ligou 10 minutos depois, dizendo que tinha recebido uma mensagem estranha e que tinha certeza de que não era Mayara quem tinha mandado. Até hoje não entendo o que aconteceu;, afirmou Joseane. ;Tínhamos amigos em comum, ele não era nenhum estranho que ela conheceu por aí. Na minha opinião, ele cometeu os dois crimes, tanto de feminicídio quanto de latrocínio. Ele se aproveitou do fato de ela gostar dele e das coisas que ela tinha.; Joseane arriscou: ;Creio que, se ela não fosse mulher e se não tivessem um relacionamento, ele não teria tentado nada do tipo. Ele se aproveitou da bondade dela em querer ajudá-lo. Era o primeiro cara com quem ela criava um vínculo após a separação;.

No dia do crime, Mayara tinha ensaio com a banda Vacas Profanas da qual fazia parte. Saiu de casa dirigindo o Gol 1992 branco. Por volta das 22h, ela se encontrou com o técnico de informática Luís Alberto Barbosa, de 29 anos, com quem mantinha relacionamento havia poucos meses. Ele, um baterista amador, a levou para o motel Gruta do Amor.

Após uma discussão, Mayara foi golpeada com três marteladas. Depois, Luís a colocou no porta-malas, voltou ao quarto e pediu à funcionária que limpasse o sangue, alegando que a garota que estava até então no quarto tinha sofrido um aborto. Ao deixar o motel, Luís passou em casa, onde deixou as coisas dela, tentou enterrá-la em um terreno baldio, mas a areia era fofa. Então ele foi ao mercado, comprou álcool, levou o corpo para a beira de estrada de uma fazenda, região conhecida como Inferninho, e ateou fogo. Alguns capatazes foram apagar e quando viram que se tratava de um corpo, chamaram a polícia.

A mãe deu falta da filha após ela não comparecer ao almoço de terça-feira, como era costume. Ela registrou boletim de ocorrência, informando que a musicista havia recebido ameaças de um ex-namorado. A mensagem de texto vinda do telefone de Mayara para o da mãe dizia: ;Você está onde agora? Ele é louco, mãe. Está me perseguindo. Estava na casa dele e brigamos feio;. Posteriormente, descobriu-se que Luís havia enviado a mensagem, incriminando uma terceira pessoa. Era uma tentativa de despistar a polícia.

A versão para os fatos mudaram por diversas vezes. No primeiro depoimento, Luís afirmou que duas outras pessoas haviam participado do crime. Que Mayara havia praticado sexo consentido com ele e outro amigo. Que esse amigo havia matado Mayara e ajudado a esconder o corpo. O terceiro seria o receptador do carro e dos bens da moça. Já no segundo depoimento, ele confessou ter praticado o crime sozinho e alegou estar sob efeito de drogas e ter um rompante de raiva. Os laudos do sangue recolhido nas paredes do banheiro do motel apontam apenas os traços genéticos de Luís junto aos de Mayara.

Luís foi preso em flagrante no dia 27 de julho, por meio de rastreador de celular de amigos da vítima. Na casa dele, a polícia encontrou uma sacola com o martelo, roupas de Mayara, instrumentos musicais, notebook, celular e documentos pessoais, estimados em 17 mil reais.

Apesar de o crime ter características de feminicídio, o caso foi tratado como latrocínio e ocultação de cadáver, logo após a prisão em flagrante de Luís, mas aguarda o julgamento do Tribunal de Justiça. Pauliane acredita que ele queria mesmo era ficar com os pertences dela. ;É uma dor que nunca vai passar. Meus pais ficaram em choque. Foi muita brutalidade o que fizeram com ela;, disse Pauliane.

Segundo Pauliane, outro fato que abalou a família foi a repercussão negativa da notícia. ;Algumas matérias de jornais disseram que ela tinha participado de uma orgia no motel, que ela usava drogas, a desmoralizaram. Os comentários na internet eram os piores, como se ela merecesse o fim que teve;, lamentou Pauliane. ;Isso também machucou demais. Minha irmã nunca foi nada disso. Diferente do que havia sido divulgado, as câmeras mostram apenas ela e o Luis entrando no motel. Depois, só ele saindo. Não foi encontrado DNA de mais ninguém além dele e não havia traços de qualquer produto tóxico na Mayara.;

Pauliane critica a ação dos funcionários do estabelecimento. ;O pessoal do motel também agiu errado, porque não chamou a polícia e limpou a cena do crime. Porcamente, mas limparam. A funcionária achou que tinha acontecido um aborto no local, e por isso não chamaram a polícia. Em momento algum perguntou onde estava a menina, se estava bem.;

No Instituto de Medicina Legal (IML), o pai Alziro Lopes do Amaral, 62 anos, foi quem compareceu para reconhecimento dos restos mortais da filha. ;Parecia que ela fazia uma nota com os dedos;, disse. A mãe, Ilda Cardoso, 50 anos, preferiu não entrar para guardar apenas as melhores memórias de Mayara. Porém, por meio de uma foto, ela reconheceu o pé da filha pelo formato mais arredondado das unhas.

;Todo dia a gente se via. Ela sempre foi muito ligada às artes. Desenhava muito bem e em seguida foi para a música. Era engraçada e tinha uma resposta na ponta da língua para tudo;, contou Ilda. ;Tínhamos um combinado dela sempre mandar pelo menos um ;oi;. Nessa terça-feira ela não apareceu. Mandei mensagem, não me respondeu. Liguei, não atendeu;, disse ela, como se tentasse remontar os últimos momentos de desespero. ;Ela não faria isso comigo. De noite, o telefone tocou. Era uma das meninas que dividia o apartamento procurando por ela. Desesperei-me. Nesse momento, chegou uma mensagem culpando uma pessoa, dizendo que a estava a perseguindo. Quando vi a mensagem, na hora soube que não era dela e fui à delegacia.;

Ilda toma remédios para dormir e faz acompanhamento com psiquiatra e psicólogo. Na opinião dela, Luís praticou os crimes de feminicídio e latrocínio. ;Pra mim, ele fez um pouco de cada. Ele se aproveitou dela por ela ser mulher, uma presa fácil, e é claro que ele tinha interesse pelas coisas dela, pelo dinheiro. Queremos que ele fique preso o máximo de tempo possível.;

A pena de latrocínio é de 20 a 30 anos, já a pena mínima por feminicídio é de 12 anos.

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