Maria Irenilda Perreira/Estado de Minas
postado em 03/04/2018 10:09
Nascida em uma das famílias de operários que ajudaram a calçar as ruas de pedra de Belo Horizonte no início do século 20, Vilma Eustáquia da Silva, de 73 anos, viu a então jovem capital amadurecer e se transformar ao seu redor. ;Quando minha família chegou para morar aqui, isso tudo era mato. Ainda era a fazenda Curral del-Rey;, conta, com orgulho, a aposentada. Analfabeto e de origem humilde, o pai de dona Vilma, José Rodrigues da Silva, conseguiu, com o dinheiro que ganhou no calçamento das vias públicas, comprar o único bem material que deixaria para os 10 filhos, segundo ela: uma casa de quatro cômodos, construída em um terreno comprido e estreito, na descida de um morro, no Bairro São Pedro, Região Centro-Sul da capital. Dona Vilma, por força de uma decisão judicial, tem agora de deixar a casa até o fim de maio.
Quase 100 anos depois, a casa continua a mesma e o terreno de 354 metros quadrados sofreu poucas alterações. ;Construímos mais um barracão, onde alguns irmãos moraram, e um muro;, comenta. O que mudou, e muito, foi o bairro. A caçula da família viu as casas simples que formavam uma vila de operários darem lugar a prédios e o bairro se transformar numa região nobre e verticalizada da capital. ;As pessoas foram vendendo as casas, inclusive meu tio, que morava aqui no lote ao lado. E aí começaram a construir prédios. De repente, só sobrou a nossa casinha;, diz. O imóvel erguido por José Rodrigues para garantir o futuro dos herdeiros ficou cercado de prédios. Corretoras que atuam no bairro avaliam que valor do terreno atualmente esteja entre R$ 800 mil a R$ 1 milhão.
"Não tenho como comprar uma nova casa. Para onde eles vão empurrar uma pessoa da minha idade? Nunca pensei que passaria por uma situação dessas. É muito triste"Vilma Eustáquia da Silva, aposentada
Em 27 de fevereiro deste ano, a relação de afeto de dona Vilma com a casa e o terreno onde a família sempre viveu sofreu um forte abalo. Uma ordem judicial de despejo determinou que ela e seus dois filhos saiam da casa, sob pena de uma multa diária de R$ 50 após o vencimento do prazo. O transtorno começou com uma ação ajuizada pela Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) em 2013, na qual o poder público afirma que a família Silva ocupa ilegalmente o imóvel, que seria de propriedade do município. Além da reintegração de posse, a ordem judicial, julgada em junho de 2017 pelo juiz Rinaldo Kennedy Silva, da 2; Vara da Fazenda Pública Municipal, manda demolir a casa e o barracão construídos no lote.
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Viúva há quase duas décadas, Vilma, que trabalhou muitos anos como manicure, vive da aposentadoria de um salário mínimo. ;Não tenho como comprar uma nova casa. Para onde eles vão empurrar uma pessoa da minha idade? Nunca pensei que passaria por uma situação dessas. É muito triste;, lamenta.
Filha de Vilma, Heloíza Helena da Costa, de 33, sugere que o drama vivido pela família seria resultado de especulação imobiliária. ;Uma construtora comprou os dois lotes abaixo daqui e o interesse dela é fazer do nosso terreno a garagem do edifício que vai ser construído;, afirma. Segundo ela, o interesse da administração municipal pelo local é recente. ;Em 1990, foi ajuizada uma ação de usucapião pela nossa família. Essa ação foi arquivada. Nela, é curioso porque a prefeitura não demonstra nenhum interesse então pelo imóvel;, diz Heloíza.
Comprovante de IPTU
Dona Vilma se considera injustiçada e afirma que o pai comprou o lote quando ainda era funcionário público. ;Quando meu pai comprou este terreno, eu nem era nascida. Ele trabalhava na prefeitura e conseguiu comprar para pagar as prestações;, afirma. Ela guarda documentos do terreno emitidos pela PBH em nome de José Rodrigues da Silva, desde o fim da década de 1920. ;Pagamos IPTU desde 1929. A guia vinha em nome do meu pai. Quando fomos construir o muro de arrimo aqui, fizemos a solicitação na prefeitura e eles emitiram um documento autorizando. Ou seja, havia um diálogo, sempre trataram este terreno como sendo da nossa família. Como que, agora, vem dizer que é invadido?;, questiona a aposentada.
O contrato de compra e venda nunca foi registrado em cartório, o que dificulta a família de Vilma provar a posse na Justiça. Juristas consultados pelo Estado de Minas, porém, disseram que documentos como IPTU em nome do pai de Vilma e a autorização de intervenção no terreno pela PBH são elementos, em tese, considerados provas de posse e podem ser usados em ações em outras instâncias judiciais, como Supremo Tribunal Federal (STF).
Prefeitura
Em nota, a Prefeitura de Belo Horizonte informou que ;a ação de reintegração de posse foi iniciada em 2013, em uma outra administração, e que a Justiça concluiu o processo em setembro de 2017, declarando o imóvel patrimônio público.
Repercussão na internet e apoio popular
O drama vivido por dona Vilma e seus filhos ganha repercussão na internet com a hashtag #donavilmafica, ecoado por diversos movimentos sociais. ;O apoio vem de diversos movimentos. Temos sidos amparados pelo carinho e solidariedade das pessoas que conhecem nossa luta. A posse é nossa;, desabafa. Este mês, uma multidão composta por vizinhos, representantes de movimentos sociais, de comissão da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-MG) e acadêmicos se reuniu no terreiro da casa de dona Vilma para transmitir apoio à família.
O Coletivo de Advocacia Popular Maria Felipa, que atua na defesa do caso desde novembro do ano passado, tenta impedir na Justiça que a família seja retirada do local. ;Entramos com uma ação rescisória, que questiona a sentença. Nosso esforço agora, é tentar suspender essa ordem de despejo. Depois, vamos buscar outros recursos, e ir até o Supremo Tribunal Federal (STF), se preciso for;, explica o advogado Eduardo Levi, representante do coletivo. Levi considera que os documentos anexados na ação não deixam dúvidas de que a posse do terreno é da família Silva.
;O senhor José comprou e pagou o terreno. Isso fica provado na descrição do IPTU, que consta os 10% que eram cobrados pela prefeitura referentes às parcelas do imóvel;, afirma. Segundo o advogado, todos os imóveis no entorno do lote de Vilma têm o registro dessa época. ;O dela, especificamente, no Livro 3 do Registro Público do Município, foi extraviado;, diz.