Fernanda Soraggi*, Tarcila Rezende*
postado em 16/04/2018 15:00
Imagine um presídio que não existem armas tampouco policiais. Onde os próprios condenados possuem as chaves para as celas e as mesmas só podem comportar, no máximo, quatro pessoas. Pode até parecer irreal, mas existem prisões assim no Brasil. E está próxima de ser implementada no Distrito Federal.
A Associação de Assistência aos Condenados, popularmente conhecidas como APAC, é uma entidade civil de direito privado e sem fins lucrativos que tem o objetivo de ressocializar pessoas que já foram condenadas pela justiça. A APAC propõe recuperar o preso através da igualdade e sem discriminação, e o método já chamou atenção de países como Chile, Costa Rica, Alemanha, Estados Unidos e entre outros. No Brasil, atualmente, existem 7 APACs femininas e 41 masculinas espalhadas por 7 estados brasileiros.
A metodologia da Associação foi pensada pelo advogado e jornalista Mário Ottoboni com um grupo de voluntários cristãos que prestavam assistência para detentos na prisão de Humaitá, em São José dos Campos, no estado de São Paulo. O grupo percebeu que o sistema penitenciário brasileiro possui muitas falhas e não cumpria o principal objetivo de devolver o preso para a sociedade livre do crime.
Com isso, eles desenvolveram um método que conta com doze elementos para uma ressocialização mais digna. Entre eles estão: a participação da comunidade, assistência à saúde e jurídica, espiritualidade, trabalho, valorização humana, família, voluntariado e curso para formação, centro de reintegração social, mérito e jornada de libertação com Cristo.
Apesar dos condenados terem sua própria cama, armários e até objetos pessoais que podem ser considerados artefatos de luxo dentro de presídios brasileiros comuns, não são todos os detentos que podem ser encaminhados para associação. Existem alguns requisitos fundamentais para um indivíduo cumprir pena na APAC: não ser vinculado ao crime organizado, ter a família morando no mesmo local onde o sujeito está cumprindo pena; uma carta com um pedido formal informando o interesse em cumprir pena na APAC, e por último, ter sua sentença já definida por um juiz, seja em regime aberto, semiaberto ou fechado. "A associação não faz distinção de quem cometeu os crimes, apenas recebemos o recuperando independente do delito que foi cometido", explica Lucinei Vilela, presidente da APAC no Distrito Federal.
Para ingressar nas APACS, os detentos são previamente selecionados por uma equipe multidisciplinar da própria instituição, que atua juntamente com a equipe técnica e a direção da Unidade Penal onde o preso estiver inserido. Esse time é responsável por verificar se a pessoa que quer entrar na APAC e se ela preenche os requisitos possíveis. Além disso, o detento ingressa na APAC somente após a manifestação do Ministério Público e do consentimento do juiz da Execução Penal responsável pela unidade daquela APAC.
Rotina
A disciplina dentro dos Centros de Reintegração Social (CRS), local onde os presos cumprem pena, é bastante rigorosa. Os detentos devem acordar às 6h da manhã e dormir às 22h e possuem várias responsabilidades no dia, como limpar, cozinhar, participar de palestras, trabalhar e estudar. "Os recuperandos que fazem a manutenção do local. Eles trabalham e são responsáveis pelo zelo e cuidado. O trabalho é fiscalizado também por outro recuperando", relata Lucinei.
O sujeito que não cumprir os direcionamentos, fugir, fazer rebeliões ou consumir drogas é automaticamente desligado da entidade e deverá executar sua pena em uma prisão comum. De acordo com a instituição, os detentos realizam exame toxicológico periodicamente, e até hoje nunca foram registradas rebeliões, assassinatos ou atos de violência dentro dos CRS.
Em algumas APACs, os detentos podem realizar ligações telefônicas, sendo permitidas apenas duas vezes na semana com duração de até cinco minutos, e também possuem direitos a visita íntima. "É necessário que a pessoa que for visitar o condenado esteja em uma união estável ou em um relacionamento com o mesmo. Não se pode levar várias pessoas diferentes para visita íntima", explica Eduardo Neves, 42 anos, secretário executivo da Fraternidade Brasileira de assistência aos condenados, FBAC, entidade responsável por assessorar, orientar e fiscalizar as APACs.
Além de ser secretário executivo da FBAC, Eduardo também é um ex-condenado da APAC. Eduardo foi senteciado a 13 anos por homicídio e cumpriu 7 anos, em regime fechado e semiaberto, na APAC de Itaúna, em Minas Gerais. Após o cumprimento de sua condenação, foi convidado a trabalhar na FBAC. "Se eu não tivesse tido a oportunidade de ter cumprido minha pena na APAC, assim como infelizmente vários não têm, nem sei o que teria sido de mim. A APAC me deu todas as oportunidades, e eu agarrei com unhas e dentes", declara Eduardo.
O modelo já está gerando resultados positivos. Segundo o levantamento feito pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a média de reincidência nas APACs é de 28%, diferentemente do resto das prisões comuns no Brasil, que são de aproximadamente 80%. E muito distante também da reincidência mundial que está, em torno de 70%. A juíza Cláudia Spinassi, do Paraná, concorda com os pilares e o desenvolvimento do trabalho feito pelas APACs. "O principal benefício do método APAC é a proteção da sociedade, pois transformando criminosos em pessoas educadas e produtivas, conseguindo, assim, evitar a próxima vítima", explica.
Cláudia explica que a sociedade não possui preocupação em pensar na segurança pública como um todo. "A maioria esquece que prisioneiros são seres humanos iguais a todos nós (quer gostem ou não) e que voltarão a conviver em sociedade, cedo ou tarde, já que no Brasil não há pena de morte, nem tampouco prisão perpétua", elucida a juíza.
Só pode entrar cristão?
A questão religiosa é um dos pilares mais importantes que compõe uma APAC, isso significa, que em diversos momentos há espaço para oração e prece. Tamiris não enxerga isso como um ponto negativo. "Não era laico, mas também não sei se era obrigatório participar das orações. Apesar de não ser legal generalizar os presos e ensinar apenas o cristianismo, não vejo como ponto negativo se o intuito for tornar-los pessoas melhores, ensinando o valor da família e o amor ao próximo", conta Tamiris.
O presidente da APAC no DF, Lucinei Vilela, explica que existe respeito dentro das associações perante outras religiões e o exercício das mesmas. "A espiritualidade é fundamental, sobretudo somada aos demais elementos. Temos assistência religiosa como ferramenta de recuperação ao recuperando, mas não impusemos qualquer religião para os eles", explica.
O pesquisador do Núcleo de Estudos Sobre Violência e Segurança (NEVIS), da UnB, Welliton Caixeta Maciel não concorda com aplicação da religião nas APACS. "Não sei se deve haver esse lado messiânico. Existem outras formas que o recuperando se reintegre socialmente sem precisar dessa parte espiritual religiosa", diz. Apesar da ressalva, o pesquisador diz achar o modelo bastante benéfico. "A filosofia das APACs é o amor e a confiança. É um voto de confiança do Estado para essas pessoas se reintegrarem e fornecer o mínimo de condições para que elas possam sobreviver", explica.
Welliton também frisa que presos comandarem presídios não é novidade dentro dos cárceres brasileiros, onde a violência reina através de facções, gangues e rebeliões. "O sistema está entregue aos presos e eles se autogovernam. O Estado negocia com os detentos uma paz violenta dentro dos presídios, mas o Estado não assume isso", informa.
APAC no DF
O grande idealizador do projeto para que o Distrito Federal possua uma APAC é Lucinei Vilela. Sua relação com a associação começou em Itaúna, em Minas Gerais, onde trabalhou como voluntário por 3 anos. Lucinei teve de se mudar para Brasília, e então surgiu a vontade de implementar o projeto no DF. "Tentei pela primeira vez criar a associação, mas não obtive sucesso. Tentei pela segunda vez e conseguimos começar o processo. A APAC já existe judicialmente, mas agora há a necessidade da criação do Centro de Reintegração Social", explica Lucinei.
O presidente afirma que ainda há muita coisa para avançar para que seja construído o Centro de Reintegração Social (CRS) no DF, e seu intuito é que exista uma associação para cada cidade administrativa. "Para construir o CRS é necessária a contribuição e doação de cidadãos e voluntários, mas para isso a sociedade precisa entender importância desse projeto. Também precisamos sensibilizar o Poder Judiciário, Executivo, Legislativo, Defensoria, OAB, Ministério Público e outras instituições", explica