Brasil

Corregedorias do TJ e MP vão apurar esterilização de moradora de rua

Laqueadura foi determinada por juiz de São Paulo a pedido do MP

postado em 11/06/2018 19:39
A Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça de São Paulo abriu nesta segunda-feira (11/6) procedimento para apurar a denúncia de que um juiz da comarca de Mococa (interior paulista) autorizou a esterilização (laqueadura) compulsória de uma moradora de rua sem o acompanhamento de um advogado ou de um defensor público. O caso foi revelado no último sábado, 9/6, em uma coluna publicada no jornal Folha de S. Paulo. A Corregedoria do Ministério Público também instaurou nesta segunda-feira uma reclamação disciplinar para apurar o caso.

A assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo informou que o Poder Judiciário não pode se manifestar sobre os processos em andamento. No entanto, explicou que a decisão judicial foi revista em segunda instância e os próprios desembargadores da 8; Câmara de Direito Pública que julgaram o caso determinaram a remessa do processo para avaliação das corregedorias da Justiça e do Ministério Público. O Ministério Público de São Paulo, de outro lado, informou que o procedimento médico foi realizado com base em decisão judicial.

O pedido para que a laqueadura fosse feita na moradora de rua Janaína, cujo nome não foi divulgado integralmente, partiu do Ministério Público e foi deferido pelo juiz Djalma Moreira Gomes Júnior. A decisão obrigou a prefeitura de Mococa a realizar a laqueadura, sob pena de multa diária de R$ 1 mil. O procedimento ocorreu logo após Janaína ter tido o bebê. Em 2017, quando a decisão judicial foi publicada, o juiz escreveu que Janaína havia manifestado o interesse em realizar o procedimento de esterilização feminina, pois não tinha condições econômicas para ter outros filhos, além de ser dependente química.

Apesar da vitória da prefeitura de Mococa na segunda instância, a decisão não chegou a tempo de evitar o procedimento cirúrgico da mulher, supostamente levada à sala de cirurgia sob condução coercitiva.

Defensoria quer ouvir Janaína

A Defensoria Pública de São Paulo informou que está apurando o caso e que pretende ouvir Janaína ;tão logo quanto possível;. Os defensores pretendem realizar uma entrevista reservada com Janaína, que, segundo o juiz, cumpre pena por tráfico de drogas e associação ao tráfico. ;Sua situação prisional também será analisada com a urgência devida;, informou a Defensoria Pública, ressaltando não ter sido chamada para defender Janaína durante este processo.

;De qualquer modo, é importante ressaltar que qualquer pedido de esterilização involuntária, tal como feito na propositura da ação, contraria frontalmente o artigo 2;, parágrafo único, e artigo 12 da Lei 9.263/1996, que proíbem a realização dos procedimentos previstos na Lei de Planejamento Familiar com a finalidade de exercer controle demográfico, bem como é vedada a indução individual ou coletiva à prática da esterilização cirúrgica;, disse Paula Machado Souza, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo.

Juiz alega consentimento

Por meio de nota, o juiz negou que Janaína fosse moradora de rua e disse que ela concordou com a proposta do Ministério Público para que fizesse laqueadura. Segundo ele, a mulher expressou em cartório da cidade que é mãe de sete filhos, que estava grávida do oitavo e que estava de acordo em fazer a laqueadura para ;evitar nova gestação indesejada;. O juiz também informou que Janaína e a sua família vinham sendo acompanhados pela comarca de Mococa e que todos os filhos dela passaram pelo serviço de acolhimento da cidade, ;alguns em mais de uma ocasião, devido à negligência dos pais em desempenhar devidamente suas funções, expondo-os a situações de risco, com o agravante de serem dependentes químicos (de crack e de bebida alcoólica) e não aderirem ao tratamento proposto, apesar de várias intervenções da rede protetiva do município;.

De acordo com o juiz, foi instaurado um processo de destituição do poder familiar, o que culminou com destituições e adoções. ;Paralelamente, o Ministério Público ajuizou ação solicitando o procedimento de laqueadura de Janaína. No bojo da ação, foi realizada avaliação psicológica. Durante o trâmite da ação, Janaína compareceu ao cartório e expressamente manifestou ciência e concordância com a pretensão de laqueadura. Cabe ressaltar que Janaína foi ouvida por diversas oportunidades, por mim, em audiências sobre seus filhos;, diz o juiz, em sua defesa.

Decisão arbitrária do Judiciário

Em entrevista à Agência Brasil, Carla Vitória, da Marcha Mundial das Mulheres e da Sempreviva Organização Feminista, classificou o ato como ;uma violência sem tamanho; e que foi uma decisão arbitrária do Judiciário. Segundo Carla, situações como essas eram comuns no país entre os anos de 1980 e 1990. ;É uma forma de controlar a vida das mulheres, principalmente das mulheres pobres;, disse.

;Foram violados os direitos dela de decidir o que fazer com o próprio corpo. Foi um ato extremamente violento;, falou ela. ;Cabe lembrar que, muitas vezes, alguns setores tentam convencer uma população que tem menos acesso a direitos desse tipo de política. É que acontecia nos anos 80 e 90. E é muito sintomático que, no momento em que o movimento feminista vem denunciando o avanço do conservadorismo, essas coisas voltem a acontecer dessa maneira;, falou.

Para Carla, a decisão do Judiciário sobre o corpo de Janaína demonstra que a Justiça do país é patriarcal. ;É uma justiça extremamente patriarcal e que subtrai toda a capacidade da mulher de pensar por si mesma, de agir por si mesma e a trata como se fosse um ser que não pudesse tutelar as próprias ações;, disse. ;Esse caso, além de nos provocar profunda indignação, nos deixa alertas. É mais um sintoma do avanço conservadorismo que vem atacando os direitos das mulheres;, falou.

Violação de direitos fundamentais

A Defensoria Pública da União (DPU) apresentou uma nota de repúdio sobre o caso na qual informa que vai representar no Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público, além de estudar medidas a serem adotadas no âmbito internacional. ;No referido processo judicial, verificou-se a não observância dos direitos fundamentais da mulher, relacionados à autodeterminação, dignidade da pessoa humana, liberdade, sobretudo em face de seus direitos reprodutivos;, diz a nota.

Também por meio de nota, o Instituto de Garantias Penais criticou a decisão judicial e classificou o caso como uma ;ultrajante violação de direitos e garantias fundamentais;. O instituto diz que o Ministério Público ;manejou, de forma aberrante, ação civil pública para pedir que o Estado laqueasse as tubas uterinas; de Janaína e que o juiz determinou a laqueadura sob condução coercitiva sem a participação de advogado no processo.

A Agência Brasil também tentou contato com a prefeitura de Mococa, mas não obteve retorno até o momento de publicação da reportagem.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação