Brasil

'Teremos de prestar contas à humanidade', diz arqueólogo 'pai' de Luzia

Pesquisador que batizou o mais importante fóssil do Brasil, Walter Neves diz que Estado brasileiro falhou em preservar um bem da humanidade e lamenta a perda de uma vasta coleção que era abrigada no Museu Nacional do Rio

Agência Estado
postado em 03/09/2018 16:29

O rosto e o crânio de Luzia, antes do incêndio que atingiu o museu no Rio

"Estou, emocionalmente, extremamente abalado", afirmou nesta segunda-feira (3/9), o arqueólogo e antropólogo Walter Neves, considerado o pai de Luzia, o fóssil humano mais antigo já encontrado nas Américas, com quase 12 mil anos, e que muito provavelmente foi perdido no incêndio do Museu Nacional, no Rio.

"Essa era uma tragédia anunciada. O poder público abandonou completamente o museu havia décadas." O antropólogo classificou o incêndio de uma "tragédia para a Humanidade. "E nós teremos de prestar contas disso para a Humanidade. Será sempre uma mancha enorme para o Brasil no mundo inteiro."


Coordenador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), Neves não foi o responsável pelo resgate do esqueleto, na década de 1970, na região de Lagoa Santa, nos arredores de Belo Horizonte. Mas foi ele quem batizou o crânio de Luzia, numa alusão a Lucy, um fóssil de australopitecos de 3,2 milhões de anos descoberto no Deserto de Afar, na Etiópia, e que é considerado um dos mais antigos hominídeos de que se tem notícia.

Graças a seus estudos, foi possível reformular a teoria de ocupação humana nas Américas durante a pré-história. Segundo Neves, pelo menos outros 200 esqueletos do extinto povo de caçadores-coletores, ao qual pertenceu Luzia, também estavam na reserva técnica do museu e provavelmente também se perderam. Os fósseis são datados de 8 mil a 10 mil anos.


Duas levas de migração

O modelo dos dois componentes biológicos postulado por Neves sustenta que o continente americano foi colonizado por duas levas distintas de Homo sapiens, vindas da Ásia. A primeira onda migratória teria ocorrido há pelo menos 14 mil anos e era composta de indivíduos parecidos com Luzia, com traços semelhantes aos dos atuais negros africanos e aborígines australianos. Este grupo, no entanto, não teria deixado descendentes. Uma segunda leva migratória teria chegado há 12 mil anos e seus membros apresentavam um tipo físico característico dos asiáticos, dos quais são descendentes os índios atuais.


"Estudar Luzia revelou sua importância para o povoamento das Américas e também que não houve apenas uma onda migratória, mas duas", afirmou Neves. "Em termos de primeiros americanos, essa é a coleção mais antiga, são mais de 200 esqueletos, todos de Lagoa Santa. Vendo pela TV é complicado saber, mas acho remota a possibilidade de esse material ter sobrevivido."

"Para mim, a maior tragédia, de longe, é a perda das coleções", diz Neves. "Em muitos países, por incrível que pareça, até na Etiópia, coleções únicas, como por exemplo a Luzia, são consideradas questão de Estado: "Isso quer dizer que elas são mantidas em situação ideal de preservação e, para estudá-la, é preciso pedir permissão diretamente ao presidente da República."

Neves frisou, no entanto, que seria "estreito", da parte dele, salientar somente a perda de Luzia. "A questão das coleções é muito cruel, porque ou você tem ou não vai ter nunca mais", disse Neves, se referindo especificamente às coleções egípcias e gregas, as maiores da América Latina, trazidas em parte por Dom João VI, em 1808, e adquiridas posteriormente por Dom Pedro II.

"Esse é um material que nunca mais vamos ter, mesmo que a gente vá escavar nesses países, as leis nacionais não permitem que as peças saiam. Então, nesse caso, nunca mais é para sempre, nunca mais vamos ter condições de fazer pesquisas sobre Egito e Grécia com base em coleções de museus no Brasil."

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação