Brasil

Artigo: 'O passado em chamas, a história em escombros'

"Além de todas as reações, das lágrimas às expressões grosseiras, vi destruída parte das minhas infância e adolescência"

Helio Brasil*
postado em 04/09/2018 10:03

O Museu Nacional do Rio de Janeiro foi criado por João VI, em 1818

(Escrito na noite de domingo, 2 de setembro de 2018, às 22h, Rio de Janeiro)

Não sei se o que está ocorrendo hoje, agora, pouco distante daqui, sempre ocorreu ou vem ocorrendo há cerca de 200 anos. Bem verdade que a ideia de conservação do patrimônio aperfeiçoou-se há algum tempo, e a tecnologia permite, com certo cuidado, evitar os desastres. Mas o Museu da Quinta, como é mais conhecido, mostrou sinais sérios de vulnerabilidade há muitos anos. Em algumas obras realizadas, com verbas limitadas ; é provável ;, não deve ter havido a instalação do que se exige para a prevenção, o combate e o cerceamento imediatos dos sinistros. As perícias, no que restar, deverão apontar o que de fato ocorreu... Críticas inevitáveis, justas, tristonhas ou com o ranger de dentes da revolta.

Além de todas as reações, das lágrimas às expressões grosseiras, vi destruída parte das minhas infância e adolescência. Olho uma foto que tirei ao lado de dois grandes amigos, nos anos 1950, o museu ao fundo, e nossos olhos cravados no futuro. Um dos amigos já nos deixou, o outro ; para nossa, minha sorte ; mantém firme a saúde e a amizade, ligando nossas famílias. Inevitável lembrar as visitas aos espaços já centenários, para ver nobres egípcios em suas milenares roupagens fúnebres, nossos índios um tanto edulcorados pela finesse da arte acadêmica, joias que nos ofuscavam com seus desenhos, salientes ornatos e molduras nos tetos alcançados pela habilidade do tromp l;oeil. A lasca metálica vinda do infinito, o robusto Bendengó, batizado pela doçura baiana.


Antônio Luiz Coimbra de Castro, Helio Brasil e Wilson José Fernandes, em frente ao Museu NacionalAgora, vão lembrar que a mansão ; doada ao Regente D. João pelo comerciante Elias Antônio Lopes, figura hoje suspeita (tráfico de escravos, dívidas com o fisco etc) ; ganhou inúmeras obras de ampliação e adequações à vida da família real, que lhe deu a feição atual, neoclássica, graças à arte do arquiteto Araújo Porto Alegre. Na gestão de Nilo Peçanha, no período republicano, ganhou ampliação dos jardins e outras adaptações. No museu, funcionavam cursos superiores da mais alta qualidade. Coleções mundialmente conhecidas, ímpares, graças à visão cultural do Imperador Pedro II e robustecidas e ampliadas por outros intelectuais do século XX. Guardava uma das maiores bibliotecas especializadas em ciências naturais da América do Sul, com mais de 470.000 volumes e 2.400 obras raras. Hoje, cinzas...

Mais do que descobrir culpados (responsáveis?) será fundamental assumir uma "política da vergonha". Não houve vítimas humanas. Apenas carbonizadas nossas almas brasileiras.

*Helio Brasil é arquiteto e escritor carioca

Museu Nacional do Rio em escombros após incêndio

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