Jornal Correio Braziliense

Brasil

Fiéis aguardam João de Deus no primeiro dia de atendimento após denúncias

Ministério Público de Goiás já recebeu 206 relatos de abusos feitos por supostas vítimas de 10 unidades da Federação

Abadiânia (GO) ; Apreensão é a palavra que define o sentimento da população de Abadiânia. O município é palco de um escândalo sexual envolvendo um dos mais conhecidos médiuns do país, João de Deus. Hoje, os devotos esperam que o religioso atenda na Casa Dom Inácio de Loyola, o que é garantido pela equipe do local. Ontem, ele estava em São Paulo.

Mulheres de 10 unidades da Federação denunciaram ao Ministério Publico de Goiás (MPGO) 206 abusos. Uma delas procurou a Polícia Civil em Abadiânia. Para preservar a mulher, os detalhes do caso estão em sigilo. Duas delas são do exterior: uma dos Estados Unidos, outra, da Suíça.

Os setores de hospedagem e transporte já sentem os reflexos da crise que se instalou no município goiano. A prefeitura da cidade estima que, ao menos, mil postos de trabalho podem ser fechados com a eventual interdição do centro espírita.

O setor mais afetado foi o de transporte. O fretador Marco Aurélio Rocha estava com uma viagem para 15 pessoas de Porto Alegre, marcada há dois meses. Ontem, somente cinco desembarcaram no Aeroporto Juscelino Kubitschek, em Brasília. ;Já esperava a desistência. A situação está delicada demais;, lamenta. Marco Aurélio teve prejuízo de R$ 400.

O mesmo aconteceu com outro transportador, que pediu para não ter o nome divulgado. De três fretamentos, ele fez somente um. Sendo que dos 20 passageiros previstos, somente cinco desembarcaram em Abadiânia. ;Se essa polêmica se prolongar, terei problemas com meu trabalho e renda. Isso é preocupante;, comenta, ao calcular perda de R$ 1 mil.

Hotéis, apesar de bastante ocupados, registraram desistências. ;As pessoas estão ligando e desmarcando as reservas por receio de serem vinculadas às acusações que estão sendo feitas ao João. Só não está pior porque a maior parcela dos visitantes não fala português e não compreende o que está sendo dito na tevê e nos jornais;, explica o gerente de uma pousada a poucos metros do templo religioso.

O mesmo aconteceu com o comércio de roupas e acessórios, que, apesar da grande movimentação, pouco vendeu. ;Não foi um dia normal. Muita gente que costuma vir aqui antes dos trabalhos espirituais não apareceu. Nenhum cliente novo esteve aqui, talvez, eles fiquem longe por um bom tempo;, conclui a comerciante Maria Clementina de Jesus, 62 anos.

Os impactos na economia local estão sendo estudados pela prefeitura. Técnicos do Executivo municipal querem dimensionar o quão grave a crise pode ser com uma possível interdição do centro espírita, como deseja o MPGO. ;Ainda não temos números para dizer, mas sabemos da gravidade da situação. Torço para que Abadiânia seja maior do que tudo isso que está acontecendo;, acrescenta o prefeito, José Aparecido Diniz.

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;Abalo moral;


Durante o dia de ontem, repórteres, fotógrafos e cinegrafistas se amontoaram em frente à Casa Dom Inácio de Loyola, onde João de Deus realiza cirurgias espirituais. Fiéis passavam pelo local bastante incomodados.

O Correio ouviu uma integrante da corrente mediúnica do grupo de João de Deus. Há 10 anos professando essa fé, ela nega que abusos tenham acontecido no local. ;Estamos reunidos em oração para o João, com a intenção de que a verdade prevaleça. Isso é a atuação de espíritos obsessores que desejam interromper nosso trabalho de caridade;, afirma a massoterapeuta Elisangela Paranhos, 33 anos (leia Três perguntas para).

Outros fiéis saíram em defesa do líder religioso. Uma mulher que se identificou apenas como Lucia, 42 anos, diz ter crescido no lugar e nunca ter sido desrespeitada. ;Seu João é como um pai. Ajuda espiritualmente, financeiramente. Enquanto muitas portas se fecham, ele está sempre nos recebendo com amor. Uma injustiça ele passar por um abalo moral como esse;, critica.

O construtor civil francês Marcos Ertel, 52 anos, frequenta o templo há três. Conheceu pela internet. Após tratamentos, diz ter se curado de depressão e largado vícios. ;Há pessoas por todo canto, não há uma sala reservada como dizem. É impossível uma coisa horrível dessas acontecer em um local de tanta luz;, acredita.

Ontem, muitos fiéis passaram o dia rezando no templo. Alguns guias turístico-religiosos levaram grupos para conhecer as instalações e as regras ; a que mais chama a atenção é a obrigação de trajar branco e não levar equipamentos eletrônicos, como celulares.

Funcionários do centro espírita garantiam o funcionamento normal hoje. ;Não há motivos para o médium João não vir atender;, garante uma recepcionista. A assessoria de imprensa do religioso confirmou a participação dele na sessão de hoje e, mais uma vez, rechaçou as denúncias.

Pelo país

As mulheres que denunciam supostos abusos se identificaram como sendo de Goiás, Distrito Federal, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro, Pernambuco, Espírito Santo, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul.

PM garante segurança


Apesar de não ter incorporado mais homens em seu efetivo, a Polícia Militar de Abadiânia garante que, de hoje até sexta-feira, dias de atendimento no centro espírita onde atua João de Deus, a segurança de moradores e visitantes está garantida.

O comando regional da PM chegou a oferecer mais policiais para a cidade, o que foi rejeitado pela 3; Companhia do 37; Batalhão de Polícia Militar de Goiás. Contudo, cidades vizinhas continuam em alerta para a necessidade de ação de emergência.

Mesmo sem agregar homens ao policiamento, a ronda foi reforçada. Na região onde fica a Casa Dom Inácio de Loyola, na Avenida Francisco Teixeira, ao menos três viaturas se revezam no patrulhamento. ;Temos condições de conter possíveis tumultos, manifestantes ou conflitos;, afirma um sargento da PM.

O prefeito da cidade, José Aparecido Diniz, faz coro. ;Não acredito que haverá confusão. Quem desconfia do médium não vai ao lugar. Só vai quem crê. Por isso, acredito que a segurança da cidade está garantida. Se precisarmos, temos como atuar;, afirma.

Denúncias


O próximo passo do Ministério Público de Goiás (MPGO) é definir o formato dos depoimentos das possíveis vítimas. Ontem, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) recebeu duas denúncias. A intenção é que as vítimas sejam atendidas nos seus locais de residência.

O procurador-geral de Justiça, Benedito Torres Neto, solicitou aos procuradores-gerais de Justiça dos MPs estaduais e do Distrito Federal que sejam designadas unidades de atendimento para coleta de depoimentos. Em Goiás, por exemplo, cinco promotores e duas psicólogas apuram as acusações.

A orientação é que as possíveis vítimas procurem o Ministério Público de seu estado, que ficará responsável pela coleta dos relatos e registro da denúncia. Em seguida, essas provas serão enviadas para a força-tarefa do MPGO. (OA)

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Comercialização de filme é suspensa

A Paris Filmes anunciou que suspendeu ;imediatamente; a comercialização do documentário João de Deus ; o silêncio é uma prece em todas as plataformas digitais. Lançado em maio nos cinemas, o filme tem direção de Candé Salles. A decisão ocorre um dia após a editora Companhia das Letras suspender a distribuição do livro João de Deus: um médium no coração do Brasil, publicado pelo selo Fontanar em 2016. O livro é de autoria de Maria Helena Pereira Toledo Machado, professora de História da Universidade de São Paulo (USP). Já a obra João de Deus ; o filme está em fase de pré-produção. Na semana passada, a empresa Lynxfilm Produções Audiovisuais conseguiu autorização para captar até R$ 4 milhões para a película por meio de incentivos fiscais.

Futura ministra lamenta

A futura ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, disse, ontem, que ;ninguém pode se valer da autoridade pastoral para abusar de uma mulher;, em referência às denúncias contra o médium João de Deus. Ao lamentar o episódio, ela defendeu uma ;contrarrevolução cultural; baseada na educação transmitida às crianças.

;No momento em que a gente coloca a menina igual ao menino, ele vai pensar ;é igual, ela pode levar porrada;;, afirmou. Damares defendeu ser preciso ;tratar menino como príncipe e menina como princesa;. A futura ministra disse que o abuso contra a mulher é uma realidade, por isso, a necessidade, segundo ela, da contrarrevolução. ;Vamos ter de cuidar da mulher lá na infância, lá na escola. Menino de 3 anos vai aprender que a menina merece ganhar flores. Menino de 7 anos vai poder levar chocolate pra menina, porque ela é especial;, frisou.

Para denunciar

As possíveis vítimas podem procurar o MPGO pelo e-mail denuncias@mpgo.mp.br, pelos telefones (62) 3243-8051 e 3243-8052 ou presencialmente


Três perguntas para

Elisangela Paranhos, 33 anos, massoterapeuta e médium da corrente espírita de João de Deus

Como o grupo reagiu às denúncias de abuso sexual?
A gente não esperava, é um choque. Há 10 anos, sou da corrente mediúnica. Vejo as curas acontecendo. Essa onda de denúncias de abusos é falsa. Nunca houve nenhum acontecimento do tipo. Desde criança, frequento a casa, sou amiga do João, convivemos todos juntos. Ele é um grande curador. Ele tem um dom espiritual.

O que a interdição da casa pode significar?

Não queremos que a casa seja fechada. Ela faz parte da história de muita gente. Abadiânia morre se a casa acabar. Estamos todos em luto. Rezando para que a justiça seja feita e para que a verdade prevaleça.

Como vocês estão se organizando para superar essa crise?

Estamos em corrente de oração para ele. Nosso lema é fé, amor e caridade. O que está acontecendo é a perseguição terrena de espíritos obsessores. Ele é luz no meio de um universo doente. Eles usam as pessoas para causarem transtornos e se levantar contra uma obra de caridade.