Brasil

Fé e ciência unidas em torno da avó de Jesus

Símbolo de devoção no Vale do Paraopeba, imagem de Santana, mãe de Maria, é recuperada em local sigiloso. Trabalho conta com ajuda da tecnologia, que guia as mãos dos restauradores

Estado de Minas
postado em 23/12/2018 10:58
Luiz Souza e Rosângela Reis observam detalhes na imagem em raios x da peça sacra, que ajuda a identificar vestígios da pintura original e da estrutura em madeiraA restauração da imagem de Santana ; mãe de Maria e avó de Jesus ; considerada símbolo católico do Vale do Paraopeba, na Região Central de Minas, une devoção e ciência e guias as mãos hábeis dos encarregados do serviço. O trabalho, feito em local sigiloso, já revelou que, ao contrário do que padres e moradores de Belo Vale pensaram ao longo do tempo, a peça do século 18 é legítima do Barroco mineiro, e não de origem portuguesa. A expectativa dos especialistas Adriano Ramos e Rosângela Reis Costa, do Grupo Oficina de Restauro, de Belo Horizonte, é que o trabalho demande seis meses, incluindo estudos e uso de alta tecnologia. Como parte dos trabalhos, a peça sacra foi levada para exames de raios x no Laboratório de Ciência da Conservação (Lacicor), no Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais (Cecor), ambos da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais.

;Precisávamos de um exame mais profundo, principalmente no tronco da imagem, já que as prospecções, comumente chamadas de ;janelas;, não permitiam verificar a pintura original;, contou Rosângela, após a sessão de raios x comandada pelo coordenador do Lacicor e vice-diretor do Cecor, professor Luiz Souza. Sob camadas de tinta, os especialistas encontraram apenas resquícios de decoração, sendo necessárias, portanto, mais pesquisas. ;A tecnologia ajuda demais, pois muitos detalhes não conseguimos enxergar a olho nu. Mais importante é que, com equipamentos modernos, podemos avaliar o que pode ser retirado ou não da peça;, disse Rosângela.

Dividida em três partes de madeira ; a cadeira com 1,60 metro de altura, a imagem de Santana, com 1,10m, e a menina Nossa Senhora, com 80 centímetros ;, a peça, pertencente à Igreja de Santana, de 1735, localizada a nove quilômetros da sede municipal de Belo Vale, tem grande qualidade artística. Mas, além das repinturas, manchas e sujeira acumulada com o tempo, apresenta problemas na estrutura de cedro e perda de pintura, embora sem ataque de cupins. Por questão de segurança, o local do serviço, que ocorre fora da capital, não foi revelado. Todas as etapas têm acompanhamento do Memorial da Arquidiocese de Belo Horizonte.

Alegria

;A comunidade está muito alegre, afinal, a imagem de Santana é ícone da região. As pessoas têm muito carinho por ela, porque se trata de um símbolo muito forte. Tanto que, quando saiu para o restauro, veio muita gente se despedir e rezar;, afirma padre Wellington Eládio Nazaré Faria, titular da Paróquia de São Gonçalo, em Belo Vale, acrescentando que os recursos para o serviço são da paróquia. Outra boa notícia é que já foi entregue o projeto de restauração do templo, também do século 18, elaborado por alunos de arquitetura e urbanismo do Centro Universitário Newton Paiva. O trabalho começou com uma visita dos estudantes à igreja, para levantamento de todas as patologias da construção. Os dados foram levados para o StudioN, escritório da escola de arquitetura, em busca de ideias para viabilizar as ações.

Em nota, a instituição de ensino informou que foram feitos, gratuitamente, desenhos técnicos da edificação, contendo todas as medidas e peculiaridades da igreja, e apresentadas soluções de intervenção para a recuperação da integridade do imóvel. Os alunos também fizeram a maquete da igreja, com obra concluída, para que as pessoas tenham ideia do resultado final.

Com base no projeto, a Prefeitura de Belo Vale abrirá licitação e pretende iniciar as obras de restauração em 2019. Outra fonte de recursos provém de atividades promovidas pela Associação dos Zeladores da Igreja de Santana do Paraopeba, entidade que é pessoa jurídica, parceira da paróquia e faz eventos para angariar fundos para as obras da igreja.

Exame apaga a lenda do tesouro escondido

Quem esteve na Igreja de Santana durante a despedida da imagem, em novembro, presenciou um fato curioso. É que, durante muito tempo, correu a lenda de que, no interior da imagem, haveria ouro e diamante. Com cuidado, os restauradores retiraram uma ;tampa; de madeira e mostraram aos presentes que o nicho estava naturalmente vazio, não havendo o tesouro que povoava o imaginário de muitos moradores. Todo o momento foi filmado e documentado pela equipe e autoridades, incluindo a coordenadora geral do Memorial da Arquidiocese de Belo Horizonte, Maria Goretti Gabrich, e a historiadora do setor, Flávia Reis.

Em agosto, o Estado de Minas mostrou a situação da Igreja de Santana, ponto de peregrinação que costuma receber cerca de 10 mil pessoas a cada 26 de julho, data consagrada à padroeira, e alvo agora de ações para recuperar a arquitetura, os elementos artísticos e o entorno. Tendo o pároco como guia, a equipe percorreu o interior da construção e viu que, por décadas, foram feitas intervenções que retiraram o brilho e traços originais. Se os anjos barrocos do retábulo-mor ganharam a camada de um prateado metálico, os próximos ao sacrário perderam os douramentos. No espaço no qual fica a padroeira, tecnicamente chamado de camarim, cores berrantes foram escolhidas em outras épocas, em um contraste com o ar singelo da igreja, tombada pelo município.

Embora sem ;contaminar; a imagem da padroeira, os cupins estão presentes na Igreja de Santana, conforme mostrou o padre Wellington. Em uma coluna pintada de verde, a madeira vai se ;esfarinhando; e exigindo um trabalho urgente de recuperação. Já na parede perto da sacristia, o pároco aponta um dos perigos visíveis: uma rachadura que rasga a tinta branca e sinaliza os riscos. O forro também demanda serviços urgentes, pois parte foi retirada e não voltou para o lugar, deixando as telhas à mostra. Em 2007, a igreja entrou no foco do Ministério Público de Minas Gerais, que cobrou providências das autoridades municipais para restauração do templo. Na época, a secretária municipal de Cultura, Turismo, Esporte e Lazer de Belo Vale, Eliane dos Santos, informou que a prefeitura vai bancar um terço do valor da obra no bem tombado pelo município.

Padroeira dos mineradores

Nossa Senhora de Santana ou simplesmente Santana (também Santa Ana e Sant;Ana) é mãe de Maria e avó de Jesus. Na capital e no interior de Minas, reúne muitos devotos, pois é padroeira dos mineradores. Em 26 de julho, data consagrada à santa casada com Joaquim, depois São Joaquim na Igreja Católica, comemora-se também o Dia das Avós. Uma das representações mais significativas, comum nos altares dos templos, é a Santana Mestra: sentada numa cadeira ou de pé, ela ensina a menina Maria a ler. O nome Ana vem do hebraico Hanna e significa graça. Moradores e visitantes podem admirar, em Tiradentes, no Campo das Vertentes, dezenas de imagens no Museu de Sant;Ana, fundado em 2014.

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