Brasil

Indígenas temem retrocesso na questão da demarcação de terras

O apoio da bancada ruralista ao presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), desde o segundo turno das eleições deixam dúvidas quanto à continuidade dessa política

Lucas Valença - Especial para o Correio, Rodolfo Costa
postado em 31/12/2018 06:00
foto de indígenas protestando em frente ao CCBB

A demarcação de terras indígenas é um assunto que certamente estará no centro dos debates em 2019. O apoio da bancada ruralista ao presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), desde o segundo turno das eleições, e as declarações do militar da reserva favoráveis à exploração em terras indígenas, no entanto, deixam dúvidas quanto à continuidade dessa política. Especialistas e povos originários do Brasil temem o retrocesso da política indigenista, uma das mais importantes para as 225 etnias existentes no país.

Bolsonaro demonstrou, como candidato, e confirmou, como presidente eleito, preocupação em promover o desenvolvimento econômico do agronegócio com sustentabilidade. Para ambientalistas, era a leitura de retrocessos para a política ambiental. Para indígenas, não foge à regra. Sobretudo diante de declarações recentes de Bolsonaro sobre rever a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima.

Para o futuro chefe do Executivo nacional, a exploração ;racional; de terras indígenas seria positiva para o desenvolvimento. A ideia é de que tribos recebam royalties por isso. ;Você tem como explorar de forma racional e do lado do índio, dando royalty e integrando-o à sociedade;, afirmou. A declaração vai na linha de outra dada pelo presidente eleito no início do mês, sugerindo que a política de demarcações precisa ser revista.

Crianças jogam futebol na terra indígena do povo Arara, no Pará - 25/3/14
;O índio é um ser humano igualzinho a nós, quer o que nós queremos. Não podemos usar o índio, que ainda está em situação inferior a nós, para demarcar essa enormidade de terras que, no meu entender, poderão ser, sim, de acordo com determinação da ONU (Organização das Nações Unidas), novos países no futuro;, disse. Para Bolsonaro, não se justifica, por exemplo, a reserva ianomâmi para abrigar cerca de 9 mil índios. ;Tem duas vezes o tamanho do estado do Rio de Janeiro;, rebateu.

As declarações levam a crer que, sob o novo governo, as demarcações ficarão completamente em segundo plano ; um claro retrocesso aos direitos indígenas. O sociólogo e antropólogo Henyo Trindade Barretto Filho, professor da Universidade de Brasília (UnB) e membro da Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), avalia que devem ser definidas apenas áreas que estão sob judicialização.

;Acredito que só serão concluídos os procedimentos de demarcação que foram judicializados, ou seja, que a Justiça determinar que se cumpra. Não vejo sinais de que o governo federal se mexerá para delimitar;, sustenta. A falta de limitação de terras representa perda de direitos indígenas. O artigo 231 da Constituição Federal estabelece que cabe ao Estado demarcar, proteger e fazer respeitar todos os bens indígenas. A estagnação da política de delimitação de terras não seria a única derrota para esses povos: outro problema seria a transferência da Fundação Nacional do Índio (Funai) do Ministério da Justiça para a pasta de Mulher, Família e Direitos Humanos.

Sob o guarda-chuva da Justiça, haveria maior garantia de proteção das forças policiais, avalia Trindade. ;A Justiça tinha maiores condições de exercer o monitoramento, por um lado, e o exercício da fiscalização sobre terras indígenas, por outro. E, definitivamente, esse novo ministério (Direitos Humanos) não terá poder de polícia para fazer o controle;, pondera o especialista. Já a pesquisadora e líder indígena Márcia Wayna Kambeba acredita que remanejar a fundação para o Ministério dos Direitos Humanos pode dar maior ;poder de ação; à entidade, pela proximidade com direitos das minorias.

foto de líder indígena Márcia Kambeba

Olhar preconceituoso


Por enquanto, porém, não há nenhuma garantia, já que as terras não foram totalmente demarcadas e a luta permanece, esclarece Márcia Kambeba. ;Queremos a segurança de poder viver em nossas terras;, defende. A expectativa da geógrafa com relação ao trabalho da futura pasta de Direitos Humanos sob a gestão Bolsonaro não é grande. O medo é de que conquistas dos últimos anos sejam perdidas. ;Como ele tem esse olhar muito preconceituoso sobre os povos originários, isso pode acabar intensificando um problema grave e grande que é a luta pela resistência;, alerta.

;O que a gente espera é que as pessoas que não são indígenas, mas que têm um olhar mais humano, possam dar as mãos para que a dizimação em massa não continue;, diz. Para ela, gera estranhamento a ideia, tecida por Bolsonaro, de que o índio está excluído do mundo globalizado e de que, para ser reconhecido pelo Estado, precisa se comportar como os ancestrais. ;Posso usar chapéu, celular, batom e continuar sendo Kambeba. Não deixo de ser Kambeba porque vivo em um lugar ou outro. A identidade, eu carrego comigo, dentro e fora da aldeia;, afirma.


Luta e violência

A pesquisadora e líder indígena Márcia Kambeba afirma que o termo ;índio; não é adequado. ;É uma forma de igualar todos, além de carregar uma lembrança de dizimação, luta e violência sexual;, explica. Na avaliação dela, os povos originários do Brasil continuam acuados. A Funai surgiu em 1967, durante a ditadura militar, como instrumento de ;controle; dos povos indígenas e, segundo Márcia Kambeba, continua a exercer esse papel.;Nós ainda somos vistos como animais, como entraves ao governo;, diz.


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