Brasil

Artigo: a cilada do mundo virtual

Hoje o mundo real é um mero apoiador do mundo virtual. Surgiram heróis, vilões, vândalos no mundo virtual que na realidade não passam de pessoas inseguras, desinteressantes e muitas vezes bobas

Thiago de Aragão
postado em 07/05/2019 06:00
Hoje o mundo real é um mero apoiador do mundo virtual. Surgiram heróis, vilões, vândalos no mundo virtual que na realidade não passam de pessoas inseguras, desinteressantes e muitas vezes bobas
O mundo virtual surgiu para apoiar e melhorar a nossa capacidade de viver no mundo real. Tornou conhecimento acessível, distribuiu experiências e nos fez enxergar um mundo que não conhecíamos. Com o passar dos anos, os papéis se inverteram. Hoje o mundo real é um mero apoiador do mundo virtual. Surgiram heróis, vilões, vândalos no mundo virtual que na realidade não passam de pessoas inseguras, desinteressantes e muitas vezes bobas.

Primeiro foi a influência na vida social. Inúmeras pessoas buscavam simular nas redes sociais uma vida que apenas sonhavam ter na realidade. O Facebook se mostrou notório em exibir pessoas em constantes estados de felicidade, riqueza, confiança e tranquilidade. A realidade, mesmo sendo diariamente bombardeada pelos problemas comuns que a vida oferece, permanecia independente do que era exibido virtualmente.

A busca pela validação instantânea, que na vida real é mais rara e complexa, ocorre na forma de singelos likes, compartilhamentos e comentários. Essa validação é agradável até para a mais confiante das pessoas. No entanto, ela se tornou indispensável para aqueles que possuem inúmeros complexos sobre si mesmos e se digladiam diariamente com a falta de autoestima. Essa validação instantânea levou muitas pessoas a consumir produtos unicamente para serem exibidos virtualmente e não necessariamente desfrutados na vida real. Demonstrar que toma bebidas caras, usa tênis da moda, viaja para lugares exóticos e apenas surfa na vidapassou a motivar o dia a dia de muita gente.

Rapidamente, essa realidade alternativa de aparências e simulações da realidade entrou no mundo da política. Certamente, como instrumento de comunicação, as redes sociais representam um enorme avanço. O problema se torna grande quando a realidade enxergada e preferida do eleitor passa a ser a virtual e não a real. Assim, mesmo com a realidade exibindo problemas graves, o mundo virtual isola certos problemas históricos e limpa temas antes notoriamente ruins, de uma forma que agora parecem corretos ou bons.

A escolha sobre o que ver, o que acompanhar e o que curtir no mundo virtual torna qualquer coisa medíocre em excelente, qualquer coisa ruim em inexistente e qualquer coisa boa em épica. Mais que isso, o mundo virtual possibilita a propagação de inimigos também virtuais.

Assim, um herói pode alegar que existe um problema a ser combatido, exemplificá-lo de forma manipulada no mundo virtual e iniciar o processo de combate a esse problema também no mundo virtual. Enquanto isso, por exemplo, a realidade pode apresentar algo completamente diferente e infinitamente menos grave.

Em redes sociais um caso filmado pode facilmente ser etiquetado como a generalidade que você não percebia. Uma foto pode ser etiquetada como a norma do mal que você ingenuamente não compreendia. O contrário também ocorre. Uma pequena decisão corriqueira pode ser etiquetada como inédita e de valor inestimável. A valorização do ser comum no mundo real passa a ser desproporcional no mundo virtual, transformando medíocres em gênios, bobos, em anticristos, e reais problemas, sem valor virtual.

Enquanto acreditarmos mais no que se passa virtualmente do que na realidade, estaremos nos distanciando da sensatez e cultivando fantasias. Esse mundo virtual já propagou loucuras sobre vacinas, idiotices sobre mudanças climáticas, terraplanismo, conspirações, entre outras coisas. Devemos voltar às origens e nos darmos mais valor, buscando conhecimento, aprendendo e vivendo na realidade, cientes de que ser uma pessoa melhor não é apenas seguir e ser seguido.

Thiago de Aragão é mestre em relações internacionais pela Universidade Johns Hopkins/SAIS, pesquisador do Instituto Francês de Relações Internacionais e Estratégicas.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação