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Brasil retira radares e patina no compromisso de frear mortes no trânsito

Com validade a partir de hoje, suspensão do uso desse tipo de equipamento e flexibilização de normas em discussão no Congresso podem afetar esforço para reduzir acidentes fatais assumido com a ONU, dizem especialistas. Em 2018, número de mortos beirou os 34 mil, contra 44 mil em 2015

Junia Oliveira/Estado de Minas
postado em 19/08/2019 09:19
Radares móveis devem ser retirados das ruas nesta segunda-feira (19)O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) completa mês que vem 21 anos em vigor com propostas de reformulações enviadas para discussão e apreciação do Congresso Nacional e o desafio de se modernizar. Nas rodovias federais que cortam o país, mudanças controversas já estarão valendo a partir de hoje, com a suspensão dos radares móveis.

No pacote de flexibilização proposto pelo Executivo ao Congresso Nacional, pontos como o fim da obrigatoriedade do transporte de crianças em cadeirinhas de retenção nos veículos e duplicação do limite de pontos da carteira nacional de habilitação (CNH) ameaçam de vez, na opinião de especialistas, o compromisso assinado pelo Brasil junto a mais de uma centena de países de reduzir em 50% o número de mortes no trânsito.

[SAIBAMAIS]Faltando um ano para o encerramento do prazo do pacto firmado na Organização das Nações Unidas (ONU), o medo agora é de retrocesso em avanços conquistados, a passos lentos, ao longo de duas décadas. O compromisso ; a Década de Ação pela Segurança no Trânsito ; prevê redução dos índices no período de 2011 a 2020. ;Em 2015, segundo o DataSUS, foram 44 mil mortes por acidentes de trânsito no país. Em 2018, o número caiu para pouco mais de 34 mil. O país conseguiu em quatro anos uma redução de 10 mil mortes por ano e isso não foi à toa;, afirma o consultor em trânsito Osias Batista.

;Reduzir de 44 mil para 34 mil não é fato para comemoração, mas mostra que estamos no caminho certo;, diz. Na reunião da ONU, em Brasília, em 2015, o Brasil era um dos poucos que não havia conseguido reduzir os índices. Nos países em desenvolvimento, a taxa de mortes por 100 mil habitantes se mostrava entre 3 e 4. No Uruguai, era de 11, Argentina 12 e Bolívia, 15. Brasil contabilizava na época 23, ao lado de Botswana, só perdendo para nações como Laos e Camboja.

Ele cita ainda outro dado. Em 2017, foram aplicadas 10 mil multas no Brasil por descumprimento ao transporte de criança em cadeirinha. Em 2018, 8 mil. ;Em dois anos, 18 mil pais foram surpreendidos por não cuidar da segurança de seus filhos;, avalia. ;A percepção do risco no Brasil é muito pequena. Ninguém achava que a cadeirinha era importante até um tempo atrás. Mesmo assim, (há pais que) acham que não há risco porque dirigem devagar, ;só até ali, a criança vai na janela olhando;. Não temos cultura para isso. Infelizmente, tem que haver obrigatoriedade. Quando o Estado fala que não vai ter multa, de certa forma, está relaxando isso;, completa.

Outro ponto importante na avaliação de Osias Batista é em relação aos radares. Na quinta-feira, foi publicada no Diário Oficial da União a decisão do presidente Jair Bolsonaro de suspender o uso os radares móveis, estáticos e portáteis com o objetivo de ;evitar o desvirtuamento do caráter pedagógico e a utilização meramente arrecadatória dos instrumentos e equipamentos medidores de velocidade;.

Em Minas, 23 equipamentos foram recolhidos pela Polícia Rodoviária Federal (PRF). Agora, a única proteção são as placas informando o limite de velocidade e 8 mil pontos com radares fixos para toda a malha brasileira. ;Qualquer lei só vale se tiver punição pela desobediência. As pessoas em geral só obedecerão à placa se souberem que em qualquer uma delas pode haver alguém escondido pronto para multar;, diz. ;Essa discussão sobre radar é um retrocesso impressionante. O que mata num acidente é a velocidade, associada a todas as outras infrações e riscos de direção.;

Critérios

O mestre em transportes e consultor técnico da Locale TT, Paulo Monteiro, teme a adoção de propostas de solução que podem criar problemas ainda piores. Ele chama ainda atenção para o fato de não se discutir o cumprimento de regras. ;Há muito tempo se discute a placa, mas não se fala das normas. Como o trânsito é gerenciado localmente, há situações em que o limite nas estradas (caso de rodovias que cortam por dentro as cidades) não é considerado por razões técnicas;, afirma.

Para Monteiro, a falta de critérios técnicos facilita o uso do radar como instrumento de arrecadação. ;Usa-se muitas vezes o radar para compensar problemas que a administração pública não foi capaz de tratar. O limite de velocidade deveria corresponder à realidade e percepção que motorista tem do perigo.;

O consultor da TT Locale defende um processo de redução de velocidade e não que ela ocorra de forma abrupta, substituindo o mau uso da regulamentação por outro pior. ;Diferentemente do que muitos pregam, os radares têm efeito pedagógico. Posso ser multado em qualquer lugar se não cumprir a regra. E como resolvo o cumprimento de regra não é tirando numa canetada, mas fazendo com que cada órgão de trânsito de estados e municípios sigam critérios técnicos.;

O professor e coordenador das disciplinas de engenharia de transporte e trânsito da Universidade Fumec, Márcio Aguiar, também defende o olhar técnico como base das decisões. ;Cadeirinha, número de pontos na carteira, todos essas questões serão analisadas pelo Congresso. Não mudarão só por decreto do presidente. A população reclama de alguns pontos, o CTB precisa ser revisto;, diz.

Outros pontos merecem atenção, no caso do especialista, para que se resolvam problemas em estradas projetadas para receber número de veículos bem inferior ao atual. Caso da BR-381 (Belo Horizonte/Vitória), cuja duplicação se arrasta há anos. Acompanhar a situação dos acidentes nos trechos de onde os radares móveis foram retirados é outra missão daqui pra frente, avalia o professor, para quem o número de mortos nas estradas brasileiras está na casa dos 50 mil por ano ; bem superior aos 34 mil registrados pelo Ministério da Saúde. ;É preciso muito investimento em infraestrutura nas estradas, mudar modal, fazer ferrovia pra tirar caminhões. Desde a década de 1980, não se faz grande investimento na infraestrutura de transporte do país.;

Linha do tempo


1997 ; Promulgado o Código de Trânsito Brasileiro: No artigo 65 determinou a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança para condutor e passageiros em todas as vias do território nacional

Maio de 2008 ; entrou em vigor a resolução 277 do Contran, que determina o uso de assentos especiais para bebês e crianças conforme a idade, com o objetivo de aumentar a segurança e prevenir mortes em casos de acidente de trânsito.

Novembro de 2016 ; Tempo mínimo de suspensão da CNH para quem atingiu 20 pontos no período de 1 ano passou de 1 mês para 6 meses. No mesmo período, valores das multas subiram até 66%

Junho de 2018 ; Entregue à Câmara dos Deputados projeto de lei que dobra limite de pontos, amplia validade da CNH e acaba com as multas para a falta de cadeiras de retenção para crianças

Agosto de 2019 ; Suspenso uso de radares móveis, estáticos e portáteis nas rodovias federais

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