postado em 15/12/2019 04:04
[FOTO1]Na madrugada de 8 de dezembro de 2018, quatro mulheres disseram, no programa Conversa com Bial, terem sido abusadas por João Teixeira de Faria, ou João de Deus, o famoso médium de Abadiânia, ou John of God, para incontáveis seguidores do curandeiro espiritual em vários países. As denúncias transmitidas no programa da TV Globo abriram o caminho para uma enxurrada de relatos de abuso sexual contra vulneráveis, que chegaram a 319, segundo o Ministério Público de Goiás.
Um ano depois do acontecimento, ao qual alguns moradores de Abadiânia se referiram como ;um apocalipse;, a pequena cidade de 18 mil habitantes, onde ainda funciona a Casa de Dom Inácio, local em que o médium atendia os fiéis, tenta se recuperar da repentina decadência.
A presença do médium na cidade por mais de 40 anos estimulou uma crescente economia informal, que gerou benefícios financeiros para muita gente, em números que a prefeitura não sabe precisar. Hoje, a ausência de João de Deus ; que há um ano cumpre prisão preventiva no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia ; é, também, uma forte presença. Isso é constatado em ruas vazias no entorno da Casa de Dom Inácio, na queda no faturamento do comércio local e em relatos de tristeza e casos de depressão entre as pessoas que gravitavam em torno da casa.
Até o fim do ano passado, o estabelecimento chegava a receber mais de duas mil pessoas em dias de atendimento. Hoje, o quarteirão onde está localizada a casa lembra uma cidade-fantasma. Até chegar ao fim da rua Frontal, onde, em 1976, foi instalada a Casa de Dom Inácio, passa-se por diversas pousadas fechadas e estabelecimentos com placas de vende-se ou aluga-se.
Sem esperança, Marcos Rocha, de 50 anos, colocou à venda o ponto onde comercializa pedras e cristais. Ele veio de Cristalina (GO) e conta que, na Casa, foi curado de várias doenças. Por isso, há 10 anos decidiu se estabelecer na cidade. ;Isso aqui era uma mina de ouro. Hoje, os negócios não correspondem a 1% do que eram. A sensação é de que aconteceu um apocalipse. Eu demiti todos os cinco funcionários. Agora, só penso em vender a loja e ir embora. Aqui não tem mais nada;, lamenta.
Empregos
Em dezembro de 2018, o prefeito José Aparecido Alves Diniz (PSD) disse que a Casa de Dom Inácio tinha 40 funcionários, mas as atividades espirituais geravam cerca de 200 empregos diretos e 1.200 indiretos. Atualmente, a prefeitura calcula entre 1.500 e 2.000 o número de desempregados.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 72% das receitas de Abadiânia são verbas de transferências estaduais e federais, mas a prefeitura atribui à debacle da Casa de Dom Inácio a queda de 20% na arrecadação do IPTU e do ITBI (Imposto de Transmissão de Bens e Imóveis).
Em abril, quando a administração municipal encerrou o prazo para a renovação anual dos alvarás, apenas cinco dos 63 estabelecimentos comerciais, entre lojas, bares e, principalmente, pousadas nos arredores da Casa de Dom Inácio, atualizaram a licença e oito deram baixa. Os demais parecem simplesmente terem fechado as portas sem saber o que fazer.
Abadiânia é cortada pela BR 060. Na margem direita, para quem chega de Brasília, que está a 117km, fica a Casa de Dom Inácio, onde tudo girava em torno do estabelecimento. Do outro lado da BR, onde está a prefeitura, fica a maior parte da cidade. Lá, os ganhos econômicos foram mais indiretos, segundo contam moradores e comerciantes, que não frequentavam a Casa, mas se beneficiaram do vigor econômico desencadeado pelos trabalhos do médium. Funcionários de mercados, açougues, postos de gasolinas e outros estabelecimentos relatam que o movimento caiu pela metade da noite para o dia depois do escândalo.
Há 10 anos, Leandro Dias de Carvalho, 40, deixou Goiânia para se instalar em Abadiânia e seguir a religião do Santo Daime. Na cidade, conheceu a esposa, com quem tem dois filhos pequenos. ;Eu tinha uma loja na entrada (da cidade) e minha mulher, essa aqui (na rua da Casa). Tive que fechar a loja de cima, pois não conseguia pagar o aluguel. Todo mundo aqui perdeu muito. Muita gente foi embora. Eu tive que demitir três funcionários;, lamenta.
Um mês antes das denúncias, a pousada de Renascer foi reinaugurada sob nova administração. Jéssica Fernanda Alves Dias, 21, a mãe e o irmão foram contratados para trabalhar ali. O pai e o marido, ou seja, toda a família, como não era raro em Abadiânia, também tinham trabalhos relacionado às atividades da Casa de Dom Inácio. ;Não íamos conseguir pagar o aluguel de onde morávamos;, conta.
O dono da pousada foi embora para Curitiba e ofereceu o local como moradia para a família em troca da manutenção do ambiente. Recentemente, marido e irmão conseguiram trabalho numa cervejaria. ;A gente não pensa em ir embora, pois gostamos de Abadiânia, mas é muito ruim de emprego. Se não pudéssemos ficar na pousada, ia ser muito mais difícil;, diz Jéssica.
;Não me meto;
O clima de mistério que envolve a cidade, antes devido às famosas curas espirituais, agora se estende ao que pensam os moradores de Abadiânia sobre os crimes atribuídos a João de Deus. As respostas são quase padronizadas. De um modo geral, as pessoas dizem: ;Não me meto nisso;, ou respondem: ;Prefiro não julgar;. Simpáticos e cordiais, os moradores mudam o semblante quando o assunto é João de Deus e fazem questão de ressaltar que os visitantes da Casa de Dom Inácio eram de fora. Quase ninguém da cidade frequentava o local, apenas aqueles que se empregavam ali, principalmente mulheres, que trabalhavam na limpeza e como cozinheiras, como contou uma delas, que esperava atendimento no açougue que o Correio visitou. ;Não escreve meu nome, não;, pediu, de olhos arregalados.
É comum moradores pedirem para não serem identificados, principalmente os mais afetados. Um dos negócios mais atingidos foi o de transporte de turistas. Um motorista, que também pediu anonimato, relata que havia mais de 100 carros transportando visitantes, pois, sem conseguir atender à demanda, os taxistas compravam outros carros e contratavam motoristas. Ele disse que todos venderam os carros extras.
A terapeuta holística Estella Maris, 61 anos, costumava levar turistas de São Paulo para serem atendidos pelo médium. Ela organizava a etapa aérea e terrestre dos visitantes. No início do negócio, há cinco anos, fazia o trajeto todo mês, mas, com o aumento da demanda, passou a fazer as excursões a cada 15 dias.
;Em média, eu levava 20 pessoas, mas já cheguei a levar 30. Foi um baque financeiro e emocional. Estava vivendo disso;, afirma Estella, que planeja voltar a trabalhar como terapeuta. Segundo ela, eram muitas as pessoas que organizavam excursões. ;A cidade recebia dezenas de ônibus e vans, e os organizadores eram indicados ;pela entidade que João de Deus incorporava;, explica.
Planos
A prefeitura aposta no potencial turístico do Lago Corumbá IV, com entrada privilegiada por Abadiânia, para reacender o dinamismo da cidade. De acordo com a administração municipal, há aproximadamente cinco mil casas no entorno do lago, além de vários condomínios, que precisam de regularização para garantir espaço público, portanto, acesso ao lago para os visitantes.
Faz parte do plano construir uma estrada de acesso ao lago, onde seria instalada infraestrutura adequada para a prática de esportes náuticos. No entanto, não há projeto pronto nem prazo para concluir a regularização dos imóveis e condomínios.
De concreto, por enquanto, há a instalação de uma fábrica de salgados e outra de processamento de feijão, previstas para março de 2020, que devem gerar cerca de 200 empregos. A prefeitura negocia com outras três fábricas. Este ano, as novidades foram um novo supermercado e a expansão de outros dois, que não foram suficientes para ativar a economia.
*Estagiária sob a supervisão de Cláudia Dianni
;Cidade muito triste;
Sandra Jacinto, 63 anos, era dona da pousada Santa Helena, vizinha da casa Dom Inácio. Foi o sogro dela, Domani José Jacinto, que presenteou João de Deus com o terreno onde foi construída a casa dos atendimentos nos anos 1970, conforme conta. Com 19 quartos, antes bastante concorridos, a pousada agora é a moradia de Sandra. ;A cidade ficou muito triste. Muita gente teve depressão. Vou vivendo o dia a dia. A gente aprende a viver com menos;, diz.
Frequentador assíduo
Há 17 anos, o chileno Erick Richard Munhoz, 54, viu seu negócio ligado à mineração ruir depois de uma forte desvalorização do cobre. Deprimido, acabou em Abadiânia, onde já morava o irmão. Ele é um dos oito funcionários da Pousada São Rafael, a maior da cidade, com 105 quartos, que antes tinha 25 empregados. ;O dono da pousada é grego e atualmente mora em Portugal. Por enquanto, ele não tem planos de vender a pousada;, conta Munhoz, que diz separar o homem João de Deus da espiritualidade da Casa D.Inácio, que ainda frequenta.
Linha do tempo
1976
fundação da Casa Dom Inácio de Loyola
2013
entrevista do médium é apresentada no The Oprah Winfrey Show. As visitas de estrangeiros explodem. João de Deus vira atração internacional
7/12/18
Quatro mulheres relatam ter sofrido abuso sexual pelo médium no programa Conversa com Bial da TV Globo
12/12/18
João de Deus atende fiéis na casa D. Inácio pela última vez
14/12/18
Justiça decreta prisão preventiva do médim
16/12/18
João de Deus se entrega à Polícia Civil de Goiás e é preso no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia
19/12/18
Polícia Civil apreende mala com mais de R$ 400 mil em moedas nacionais e estrangeiras e seis armas de fogo na casa do médium em Anápolis e documentos na Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia
28/12/18
MP de Goiás apresenta a primeira denúncia contra João de Deus por abuso sexual de vulneráveis
09/01/19
Justiça de Goiás determina o bloqueio de R$ 50 milhões em bens e dinheiro do médium
22/03/19
João de Deus deixa a prisão para ser internado em um hospital de Goiânia
23/03/19
MP-GO apresenta denúncia de crime por falsidade ideológica e inicia investigação por rede de proteção a João de Deus
06/06/19
Após decisão do STJ, o médium deixa o Instituto Neurológico de Goiânia e volta ao Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia
02/11/19
MP-GO oferece a 11; denúncia por abuso sexual
07/11/19
João de Deus é condenado a quatro anos de prisão em regime aberto pelo porte ilegal de arma de fogo