Brasil

Troca de cartas volta a ganhar adeptos e transforma-se em hobby na era digital

Correio Braziliense
postado em 01/01/2020 08:33
O primeiro passo é uma saudação, seguida de apresentação: quantos anos tem, onde mora, o que faz da vida, o que gosta de ler, de assistir, fazer. Depois, é o momento das perguntas para descobrir interesses em comum e, também, de acrescentar alguns mimos, como adesivos, recortes e afins. Esse passo a passo faz parte de um tutorial que, embora publicado no YouTube, tem objetivo mais analógico: ensinar a escrever cartas. A troca de correspondência até deixou de ser um meio prático de comunicação, mas continua a ter milhares de adeptos no Brasil, tanto entre saudosos quanto entre aqueles que o adotaram já em plena era digital. Mais que isso: a tecnologia tem ajudado a atrair interessados por meio de blogs, sites, hashtags, grupos em redes sociais e até aplicativos. "É uma forma de se desligar do ambiente veloz, de parar, sentar e escrever para produzir uma coisa à mão. Precisa sair de casa, ir nos Correios, postar a carta, esperar uma resposta. Sai do contexto de hoje em dia, em que tudo é uma correria", descreve Carolina Santiago, de 23 anos, mestranda em Literatura e moradora de Salvador. Carolina começou a trocar cartas em 2017 e, hoje, mantém contato com cerca de sete "penpals" (amigos por correspondência, em inglês). "Não sabia que era uma comunidade tão forte nos dias atuais. Quando comecei, queria conhecer pessoas diferentes das que estava acostumada, de gerações diferentes, conhecer novas formas de pensar." A jovem compartilha parte dessas experiências no canal Carolinaismo no YouTube, com vídeos de até 2 mil visualizações. Fora do País, publicações semelhantes chegam a passar as 900 mil visualizações. Elas são focadas especialmente em técnicas para escrever letras mais caprichadas e decorar cartas e envelopes com recortes de jornais e revistas, adesivos e itens afins. Tudo isso ganha força com o crescimento do interesse por lettering, uma espécie de caligrafia que não precisa seguir regras ortográficas (como misturar letras cursiva e de forma, por exemplo), em que a escrita vira quase um desenho feito à mão. Outras tendências do mesmo nicho são o bullet journal e o scrapbooking, espécies de agendas e álbuns feitos à mão. Grupos Além de dicas, os interessados têm na internet a principal plataforma para encontrar pessoas para se corresponder, principalmente por meio de hashtags no Instagram, grupos no Facebook e sites especializados. Esse é o caso, por exemplo, do Envelope de Papel, que mantém site, perfil em redes sociais e um grupo de WhatsApp. O objetivo principal é apresentar breves descrições sobre pessoas que querem se corresponder, com interesses, hobbies, cidade natal e idade, dentre outras informações básicas. "Em 2016, comecei a pesquisar na internet sobre cartas e aí encontrei um site internacional, que estava meio desatualizado. Não sabia se os endereços eram os mesmos. Comecei um grupo de cartas, passei a receber algumas e a me identificar com esse mundo", conta a idealizadora do Envelope de Papel, a publicitária mineira Mariana Loureiro, de 23 anos. Hoje, a iniciativa reúne perfis de 585 pessoas de todos os Estados do País e alguns brasileiros que moram no exterior, com uma média de dez novas inscrições por semana, "sem divulgação", como ressalta Mariana. "A faixa etária é bem variada, tem jovens de 15, 20 anos, tem pessoas com mais de 50 anos muito ativas e um grupo infantil, de 7 a 14 anos", comenta. A publicitária conta que se interessou por cartas e foi procurar mais informações online após uma conversa com o pai, que se correspondia com estrangeiros nos anos 1980. "A internet é essencial (para a popularização das cartas). A maioria das pessoas vai, em primeiro lugar, na internet para procurar." A assistente técnica Ana Lúcia Abreu, de 51 anos, é uma das usuárias cadastradas do Envelope de Papel. "Antes, mandava cartas para pessoas que conhecia, que trabalhavam comigo. No Natal, mandava cartão para irmãos, tios, amigos mais chegados. Gosto da sensação de que alguém lembrou de você. A sensação é muito boa, de receber uma carta." Ana Lúcia costuma escrever no fim de semana, especialmente nos fins de tarde e início de noite de domingo. "Deixo a coisa fluir. O melhor presente que a gente pode dar a alguém é o tempo, porque ele nunca mais volta." Já a professora de Língua Portuguesa Lygea de Souza Ramos, de 36 anos, costumava se corresponder quando era adolescente e retomou o hábito há três anos. "Sempre foi uma coisa que me agradou muito, é uma forma de demonstrar carinho pela pessoa. Telefone, e-mail, é tudo muito imediatista, com mensagens curtas, não tem aquele tempo de elaboração como a carta." "Pensar como fazer até a decoração da carta abre um universo muito diferente. Hoje tem um universo de papelarias enorme, uma infinidade de coisas que posso usar para decorar, trocar", conta ela, que se corresponde com cerca de dez pessoas. "Gosto de conhecer outras culturas, as pessoas se mostram mais por meiodas cartas, o que gostam, o que fazem." Versão digital O hábito também ganhou impulso por intermédio do aplicativo Slowly, que simula a troca de cartas de forma virtual e tem cerca de 2 milhões de usuários mundialmente. O app propõe matches (combinações) com pessoas de interesses semelhantes (fotos de perfil não são permitidas), com as quais é possível trocar cartas virtuais - que podem levar até dias para chegar ao destinatário, a depender da distância geográfica. "Em um app normal, geralmente a pessoa fala 'Oi, tudo bem', é difícil a coisa pegar. Fiz bons amigos assim, mas é uma coisa rara, precisa de muitas conservas para ter uma interessante. O Slowly é mais fácil, tem isso de não estar tentando conversar com um monte de gente ao mesmo tempo, de escrever como se fosse carta, com um monte de informação", comenta o mineiro Marcelo Fonseca, de 32 anos, professor de idiomas. De férias fora do País, Marcelo pretende voltar a se corresponder em 2020. Uma das principais motivações é praticar idiomas com nativos. "Tinha de colocar no meu planejamento. Chego em casa às 20, 21 horas. Às 23 horas, sentava para escrever. O app passou a ser parte da minha vida, é uma coisa que você não para qualquer instante e responde. Tem mensagens que levei 1h30 ou mais escrevendo, tem de ser pensado." As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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