Brasil

Cloroquina e coronavírus: remédio virou arma ideológica

Bolsonaro insiste em substância como cura da Covid-19, mesmo sem estudos conclusivos sobre eficácia do medicamento. Ao mesmo tempo que elogiou, nessa quarta (08/04), o médico Roberto Kalil por assumir uso, cutucou o infectologista David Uip, que não revelou tratamento

Correio Braziliense
postado em 09/04/2020 06:00

''Impediu minha ida para a UTI'', afirmou Kalil sobre uso do remédio. - ''Respeite o direito de não revelar meu tratamento'', disse Uip a BolsonaroAntes mesmo de se mostrarem como solução para salvar vidas de pacientes com Covid-19, a cloroquina e a hidroxicloroquina se tornaram arma ideológica de interesses políticos. Mesmo sem estudos conclusivos sobre a eficácia, o presidente Jair Bolsonaro tem defendido, com ênfase, que o tratamento com as substâncias é o caminho para a cura. Ontem, pelas redes sociais e em pronunciamento à nação, usou a situação como ferramenta para provocar o debate. “Cada vez mais, o uso da cloroquina se apresenta como algo eficaz”, disse. O uso dos medicamentos é uma das divergências entre Bolsonaro e o ministro da Saúde, Luis Henrique Mandetta. Mas, segundo Mandetta, não há uma imposição por parte do chefe do Executivo para o uso do medicamento.

 

Sem citar nomes, Bolsonaro alfinetou o coordenador do Centro de Contigência contra o Coronavírus do estado de São Paulo, o infectologista David Uip, e ainda incluiu no questionamento o cardiologista do Hospital Sírio-Libanês Roberto Kalil, ambos recentemente infectados pelo vírus. “Dois renomados médicos no Brasil se recusaram a divulgar o que os curou da Covid-19. Seriam questões políticas, já que um pertence à equipe do governador de SP?”, indagou, nas redes sociais. 


Mais tarde, em pronunciamento oficial, na TV, voltou ao tema: “Conversei com o Dr. Roberto Kalil. Cumprimentei-o pela honestidade e compromisso com o Juramento de Hipócrates, ao assumir que não só usou a hidroxicloroquina, bem como a ministrou para dezenas de pacientes. Todos estão salvos. Disse-me mais: que, mesmo não tendo finalizado o protocolo de testes, ministrou o medicamento agora, para não se arrepender no futuro. Essa decisão poderá entrar para a história como tendo salvo milhares de vidas no Brasil. Nossos parabéns ao Dr. Kalil”.


Uip preferiu manter sob sigilo quais medicamentos empregou no tratamento. Kalil não escondeu: “Sempre que é proposto um tratamento, isso é discutido entre médico e paciente. Quando me propuseram o uso de hidroxicloroquina, óbvio que aceitei”, revelou em entrevista à rádio Jovem Pan. O cardiologista recebeu alta ontem após ficar dez dias internado com a Covid-19.


Ele defendeu a possibilidade de tratamento com a medicação sob a ótica de decisão entre médico e paciente, mas ponderou que não há estudos que comprovem os benefícios. “Tudo que eu não quero, pela ética médica, é influenciar outros tratamentos. Se estou falando para milhares de pessoas, muitas vão querer, inadvertidamente, usar cloroquina. Então, isso é uma responsabilidade muito grande”. Kalil disse, ainda, que a hidroxicloroquina foi apenas um dos medicamentos que contribuíram para a recuperação. Foram propostos pelos médicos corticoide, antibiótico, anticoagulante e oxigenoterapia.


David Uip não confirmou o uso da hidroxicloroquina para tratar a infecção pelo novo coronavírus. “Se eu tomei ou não e qual droga usei para febre, enjoo, isso é pessoal. Não faço isso para esconder, mas não quero transformar meu caso em modelo para coisa alguma”, explicou. De volta às coletivas diárias, ao lado do governador João Doria (PSDB), o infectologista pediu a Bolsonaro que respeitasse o direito de não revelar seu tratamento, e frisou que não é contra as medicações defendidas pelo presidente.


Ele lembrou, inclusive, ser um dos quatro médicos convidados pelo Ministério da Saúde para discutir a aplicação da substância. “Houve uma discussão e um consenso entre nós cinco para alterar a indicação da hidroxicloroquina”, contou Uip, sobre a decisão de antecipar o uso do medicamento no tratamento da Covid-19, desde que seja uma vontade e um acordo tanto do médico quanto do paciente.


O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), saiu em defesa de Uip nas redes sociais. “Sua relevância supera as disputas políticas divisionistas. A guerra pelo tratamento da Covid-19 não é um embate eleitoral”, publicou no Twitter.

Sensação de cura
Na coletiva de ontem do Ministério da Saúde, Mandetta disse que encomendou um estudo ao Conselho Federal de Medicina (CFM) com um posicionamento sobre o tema até o dia 20 de abril. “Não vai ser da cabeça do Uip ou da minha cabeça. Não existe dono da verdade”, declarou. Na ocasião, ele voltou a afirmar que não há estudos suficientes sobre a eficácia e a dose necessária e ressaltou precisar de mais tempo — e mais embasamento —, antes que o órgão federal possa recomendar o uso amplo da cloroquina e da hidroxicloroquina contra a Covid-19.


O uso do medicamento para pacientes diagnosticados com Covid-19 é um dos motivos de atrito entre o presidente e o ministro da Saúde. Enquanto Bolsonaro frisa, em diversos momentos, a importância do uso da hidroxicloroquina em pacientes infectados pelo novo coronavírus, Mandetta é reticente e fala sobre possíveis problemas e efeitos colaterais. No entanto, o ministro declarou, ontem, que “o presidente da República, em nenhum momento, fez qualquer colocação, para mim, diretamente, de imposição”. “Ele defende, como todos nós defendemos, que, se há uma chance melhor para esse ou aquele paciente, que a gente possa garantir o medicamento. Mas também entende quando a gente coloca situações que podem ser complexas”, apaziguou.


Para especialistas da área da Saúde, a recorrência e a forma com que Bolsonaro tem pautado o assunto podem gerar efeitos negativos na sociedade, como uma falsa impressão de cura. E isso acarretaria no relaxamento das medidas de isolamento. “Quando alguém fala pra você ficar tranquilo porque existe uma droga que funciona, isso gera uma falsa sensação de proteção e cai por terra a justificativa para você dizer que as pessoas têm que tomar medidas de prevenção”, frisou o infectologista do Hospital Sírio-Libanês Alexandre Cunha. Para ele, o grande problema é que a discussão científica está sendo banalizada pelo viés ideológico. “Preferências políticas não deveriam influenciar em nada decisões técnicas. É isso que, hoje, está acontecendo.”

 

Pesquisas  em coalizão 

Pesquisadores brasileiros têm unido esforços para avançar nos estudos que certifiquem a eficácia do uso da medicação. Hospitais de referência que incorporam o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (Proadi-SUS) avaliarão opções de tratamento para pacientes infectados. A iniciativa, nomeada de Coalizão Covid Brasil, incluirá cinco projetos de pesquisa, sendo três para avaliar pacientes hospitalizados, um para seguimento um ano após alta hospitalar e um para pacientes não hospitalizados com diagnóstico positivo para a doença.


Além da Coalizão Covid Brasil, outra vertente empenhada em encontrar soluções de tratamento é coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). É pela instituição que o ensaio clínico Solidariedade (Solidarity), da Organização Mundial da Saúde (OMS), é desenvolvido no Brasil. A ação tem como objetivo investigar a eficácia de quatro tratamentos e será implementada em 18 hospitais de 12 estados, com o apoio do Departamento de Ciência e Tecnologia (Decit) do Ministério da Saúde.

 

Mais e menos tóxicas

A cloroquina é usada para tratar doenças como malária, lúpus e artrite. Ela e a hidroxicloroquina fazem parte do mesmo grupo de substâncias, sendo a segunda uma derivação mais segura, branda e, portanto, considerada menos tóxica. Ambos os medicamentos não podem ser manipulados sem indicação médica e precisam ter a dosagem específica para cada caso. Sem isso, os efeitos colaterais podem prejudicar o organismo e até levar à morte.

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