Brasil

"Estudos são todos inconclusivos"

Correio Braziliense
postado em 09/04/2020 04:04

Há embasamento científico no uso da cloroquina?
Em termos técnico-científicos, não há nenhuma evidência razoável de que a hidroxicloroquina leva a uma melhora de pacientes com Covid-19. Os estudos feitos são todos inconclusivos. E os relatos de casos com pessoas falando: “tratei 80, 100, 400 pacientes, o resultado foi assim”, além de não serem válidos do ponto de vista científico, têm outro grande problema. Como a mortalidade dessa doença é bastante baixa, principalmente em grupo sem comorbidades, se eu fizesse o mesmo protocolo utilizando dipirona, por exemplo, provavelmente teria os mesmos resultados. Então, não significa nada falar: “tratei 100 pacientes com cloroquina em casa e nenhum internou”, porque eu posso tratar 100 pacientes com chá de gengibre em casa e eles não internarem, também. A necessidade de internação, a depender do grupo que você pegue, é pequena. Temos que ter muito cuidado com os dados que não têm grupo-controle, que não têm um grupo para você comparar.

Atuando na linha de frente, o senhor consegue perceber algum benefício do medicamento?
Eu nunca prescrevi cloroquina para nenhum dos pacientes e eles estão evoluindo muito bem. Eu só vi um caso que tomou cloroquina desde o início, que não foi uma prescrição minha. O caso foi o que evoluiu pior, dos que eu vi. Dentre os casos que eu acompanhei, foi a pior evolução. Começou a tomar cloroquina, inicialmente, o paciente teve que ir pra UTI, foi entubado e quase morreu. Isso já mostra que é uma falácia a história de que a cloroquina funciona em 100% dos casos, como vem se alardeando. Já tive outros dois pacientes, que já tomavam cloroquina por outros motivos, não por causa da Covid-19, e que nem antes, nem durante, evoluíram muito bem. A meu ver, cloroquina não tem espaço para prescrição do ponto de vista estritamente científico, embora eu apoie, isso é bem importante frisar, todo e qualquer estudo com toda e qualquer medicação que mostre alguma evidência.


Adotar o uso indiscriminado pode ter efeito reverso?
Uma coisa que precisa ser falada em relação a hidroxicloroquina é que, se a gente assumir que tem que ser usada em todos os pacientes, não vai haver um estudo, porque não seria ético a gente fazer um estudo para uma medicação que sabidamente funciona. O que não é o caso. Então você precisa de um grupo que não tome (a medicação) para comparar os dados e ter a melhor informação possível. Se essa fosse uma doença com mortalidade de 50, 80%, estaria plenamente justificado, isso se chama uso compassivo, que é o uso por compaixão mesmo. Uma doença como o ebola, por exemplo, para você pular de um avião em queda livre, qualquer coisa que eu dê que possa te fazer planar está valendo. Com uma doença como o ebola, que mata 80%, se quiser dar uma droga que não tem comprovação científica, faz sentido, porque quatro em cada cinco vão morrer. Para a Covid-19, a gente sabe que a mortalidade é bem menor que 1%. Não justifica eu expor mais de 100 pessoas a uma droga que elas não precisam para, talvez, beneficiar uma.

Qual é o perigo social de assumir uma pretensa cura para a doença?
Um efeito importante, que é um defeito até sociológico, é que isso gera uma falsa sensação de proteção. Na medida que alguém fala para você: “olha, fique tranquilo que tem uma droga que funciona em 100% dos casos”, não há mais justificativa para você dizer que as pessoas têm que tomar medidas de prevenção. Por que eu vou me prevenir? Por que eu vou lavar a mão não sei quantas vezes com álcool em gel? Por que eu vou evitar sair? Por que eu vou usar máscara? Por que eu não vou em aglomerações? Eu posso tomar o remédio que cura 100%, que é o que estão vendendo e que é eficaz sempre. Isso é o primeiro efeito. As medidas que estamos adotando de prevenção para evitar uma sobrecarga do sistema podem ser fortemente afetadas por uma falsa sensação de segurança passada por uma falsa eficácia da droga.

O que a população pode fazer enquanto não há evidência de eficácia?
Prevenção. Prevenção é a única coisa que a gente tem para fazer nesse momento, e não alardear estudos científicos sem adequada comprovação. São as duas grandes contribuições que a população pode fazer: diminuir o número de casos, para a gente não ter sobrecarga de leitos, e não tentar colocar roupagem científica no debate, que acaba sendo um debate político, uma guerra de braço política. (B.L)

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