Correio Braziliense
postado em 20/04/2020 08:33
Brumadinho – Debaixo da forte chuva sobre o Bairro Córrego do Feijão, em Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, a dona de casa Maria Gonçalves Braga, de 82 anos, se abriga sob a sombrinha, à espera de uma carona. Quer retornar a Casa Branca, outro bairro do município, a 13 quilômetros, mas, desde que a pandemia do novo coronavírus impôs restrições ao convívio social, não há mais acesso ao transporte público. O risco representado pela pandemia é a terceira onda de sofrimento que surpreende o povoado da Grande BH. Primeiro, foi a tragédia do rompimento da Barragem B1, da Mina Córrego do Feijão, operada pela mineradora Vale. Depois, a contagem dos mortos e a sofrida operação resgate das vítimas, 270 no total, 11 ainda desaparecidas.Agora, chegaram as dificuldades da quarentena, que, se são incomparavelmente menores, agravam os transtornos das duas primeiras. Depois de uma hora esperando, já molhada e com insistente tosse rouca, dona Maria viu parar um micro-ônibus de transporte de trabalhadores. Contudo, o veículo não seguia para o destino da idosa. “É uma maldade o que estão fazendo com o povo daqui. Estão esquecidos. Queria ajudar, mas vou para outro lado”, disse o motorista Sérgio Pinto, de 45 anos.
Resignada, Maria Gonçalves segue esperando uma carona, enquanto diz não ter medo da doença causada pelo novo coronavírus. “Preciso é ir para casa. Não tenho medo de nada, não. Se nem a barragem me pegou... Aqui, a gente está abandonada. Mas já estou mais para lá do que para cá... Estou é na hora de morrer, já”, desabafou, em um misto de resignação e cansaço.
Após um ano do desastre, a situação do Córrego do Feijão já não permitia prever a retomada da vida normal. Muita gente atormentada pela avalanche de rejeitos tinha deixado a comunidade; outros haviam se retraído do convívio social. Gente que passou a se apoiar em medicamentos para ansiedade e depressão, que tiveram seu uso ampliado em 79% e 56%, respectivamente, como mostrou com exclusividade reportagem do Estado de Minas em janeiro.
O êxodo imediatamente se refletiu no fechamento de pontos de comércio. Em um nível tamanho que, hoje, os portais de armação metálica que a Prefeitura de Brumadinho instalou nos acessos ao Córrego do Feijão com o aviso “Fique em casa” – para proteger as pessoas da disseminação da infecção viral – soam como alertas inúteis. Não porque haja desrespeito sistemático, como se vê em outros lugares, mas porque não sobrou quase ninguém para ler.
Os pequenos armazéns, bares e farmácia que abasteciam os habitantes praticamente desapareceram. Mesmo os comerciantes que resistiram às vacas magras após o rompimento, não suportaram o golpe da quarentena imposta pelo novo coronavírus. Até as estruturas de apoio comunitário, como a Casa Rosa, que prestava auxílio assistencial e ensinava ofícios, também se viram afetadas e obrigadas a fechar as portas. As praças onde poucas pessoas ainda se encontravam para um dedo de prosa sobre a vida, o andamento das ações trabalhistas e indenizações tornaram-se desertas.
Solidão
Sozinhos, os que ficaram relatam a angústia de se sentirem abandonados e sem saber qual será seu futuro. “O comércio fechou todo. Agora, mantimentos e medicamentos, tudo se precisa comprar no Centro de Brumadinho (a 12 quilômetros). Só que não vêm mais ônibus. Nem da prefeitura e nem da Vale, por causa da doença. Táxi para ir e voltar custa R$ 70. Um absurdo. Com isso, minha filha fica sem os remédios de bronquite e o posto de saúde só funciona com agendamento”, reclama a ajudante de serviços gerais Claudineia Carvalho Oliveira, de 36 anos.
Com a tragédia, Claudineia perdeu um sobrinho, se separou do marido e hoje faz uso de medicamentos e se trata com psicólogos. “A gente só vive com remédio psiquiátrico, senão, não cria vontade nem de sair de casa. Não dorme. Não vive mais”, lamenta.
Uma outra mulher, que pede para não ser identificada por ter medo de perder seu emprego, disse ter acabado de ter as férias antecipadas pela Vale em uma das ações sociais, e não sabe o que vai fazer. “Se todos daqui forem embora, meu emprego vai acabar. Já está difícil, porque moro de aluguel e o dono da casa está vendendo o imóvel para a Vale. Um aluguel em Brumadinho, de casa simples, aumentou demais. Está em R$ 600 ou mais”, afirma a funcionária.
‘Se forem embora, vamos ter de fechar’
Em um dia de semana normal, o único ponto de comércio que foi encontrado em funcionamento pela equipe do EM foi o restaurante ao lado do Centro Comunitário. A clientela ali se resume a 40 funcionários de uma empresa que presta serviços para a Vale e que podem ir embora assim que o contrato terminar ou for suspenso. Os donos do estabelecimento, que são idosos e têm doenças crônicas, estão recolhidos por causa da COVID-19, restando aos filhos preparar as refeições em um fogão a lenha e manter o atendimento.
“Chegávamos a servir 180 pessoas antes do rompimento. Fomos a zero depois que as buscas ficaram só com os bombeiros e as pessoas foram indo embora. Sobrou pra gente alimentar os funcionários dessa firma. Se forem embora, pelo jeito, vamos ter de fechar as portas”, lamenta Gleice Cristina Monteiro, de 41, que está tocando o negócio. Com a COVID-19, seu trabalho ficou ainda mais difícil. “Tudo do que precisamos, temos de ir a Brumadinho buscar. E a maioria dos supermercados limita as compras. Só pode três garrafas de óleo, três sacos de arroz... Tudo está mais caro para nós”, lamenta.
Durante os esforços pelo resgate de pessoas atingidas pela avalanche de mais de 9 milhões de metros cúbicos de rejeitos que desceram após o rompimento da Barragem B1 da Mina Córrego do Feijão, o povoado de mesmo nome tinha movimentação intensa. Equipes de socorristas, policiais, bombeiros, voluntários, funcionários da Vale, moradores e parentes de pessoas desaparecidas congestionavam as apertadas vias desde o dia 25 de janeiro de 2019.
Mas o tempo passou. As buscas localizaram quase todos os mortos, restando ainda recuperar 11 corpos. Quando se instalou a ameaça da COVID-19, até as operações de busca dos bombeiros foram interrompidas. O ambiente, antes movimentado, agora se encontra desolado. Difícil definir qual o cenário pior.
Monitorados
Na Unidade Básica de Saúde de Córrego do Feijão, o atendimento é agendado por telefone para que não ocorram aglomerações de pacientes na pequena recepção, onde cabem não mais que cinco pessoas. Pacientes isolados – eram dois na semana passada – eram telemonitorados para sintomas que podiam ser da COVID-19. “A vacinação está sendo escalonada pelas ruas onde cada um mora. Mas temos aqui oferta para todos, os funcionários têm máscaras, luva, álcool em gel para trabalhar. Nesse ponto está tudo bem”, disse a enfermeira Fernanda Rodrigues.
A pequena Igreja de Nossa Senhora das Dores, que serviu de posto de comando e ainda tem uma placa de agradecimento aos bombeiros que trabalharam na operação, agora está fechada. O campo de futebol que sediou um pouco do lazer da comunidade e chegou a receber pousos e decolagens de até 13 helicópteros em num só dia também está vazio. No meio dele restou esquecida uma caçamba cheia de placas de grama antiga e lixo. Atrás da igreja, o pasto amplo que recebeu tendas da Polícia Civil para funcionar com posto avançado do Instituto Médico-Legal (IML) e estacionamento de viaturas também mudou. Agora, se transformou em matagal alto e fechado.
O destino de alguns dos corpos de moradores do Córrego do Feijão mortos pelo desastre foi o pequeno cemitério Recanto da Saudade. Nem o espaço de última homenagem a essas vítimas escapou da atual onda de abandono. Lá o mato também cresce alto, contido apenas pela muralha rústica de pedras, encobrindo de esquecimento as lápides com os nomes dos filhos da terra. Uma das que ainda se podem ler exibe mensagem que lembra a efêmera condição humana: “Eu fui quem tu és. Tu serás quem eu sou”.
Prefeitura cobra a volta do transporte
A Prefeitura de Brumadinho informou que a Vale foi notificada a retomar o funcionamento do transporte público que fornecia ao Córrego do Feijão e região. “A prefeitura está estudando entregar cestas básicas para as famílias que têm crianças matriculadas na rede municipal de ensino. Essa iniciativa foi levada ao Ministério Público e, enquanto agrada a resposta, a prefeitura tem estudado a melhor forma de fazer uma eventual compra e cotação de preços. Contudo, é importante destacar que, por meio das secretarias de Desenvolvimento Social e Saúde, mantemos programas específicos para o Córrego do Feijão o para o Parque da Cachoeira”, informa a administração, em nota, citando outra comunidade atingida pelo desastre.
Apesar de os moradores da comunidade sentirem o fechamento do comércio como um golpe que pode ser fulminante, a prefeitura informa que está seguindo as orientações estaduais e que a medida é “dura, mas importante neste momento de transmissão do coronavírus”.
A Vale informou que em virtude da pandemia, os atendimentos presenciais com a comunidade de Córrego do Feijão foram interrompidos, atendendo às recomendações das autoridades. “Os atendimentos seguem sendo realizados, de forma remota – por telefone ou on-line – e, sempre que necessário, também fisicamente, como na eventualidade de trânsito entre regiões ou de atendimentos médicos. Todas as semanas a situação é reavaliada”, informou.
Com relação à aquisição de itens de primeira necessidade, a empresa sustenta que “fornece uma cesta básica mensal, além do pagamento de um auxílio emergencial (um salário mínimo por adulto, meio por adolescente e um quarto para cada criança) para as famílias, todos os meses”.
Solidão
Sozinhos, os que ficaram relatam a angústia de se sentirem abandonados e sem saber qual será seu futuro. “O comércio fechou todo. Agora, mantimentos e medicamentos, tudo se precisa comprar no Centro de Brumadinho (a 12 quilômetros). Só que não vêm mais ônibus. Nem da prefeitura e nem da Vale, por causa da doença. Táxi para ir e voltar custa R$ 70. Um absurdo. Com isso, minha filha fica sem os remédios de bronquite e o posto de saúde só funciona com agendamento”, reclama a ajudante de serviços gerais Claudineia Carvalho Oliveira, de 36 anos.
Com a tragédia, Claudineia perdeu um sobrinho, se separou do marido e hoje faz uso de medicamentos e se trata com psicólogos. “A gente só vive com remédio psiquiátrico, senão, não cria vontade nem de sair de casa. Não dorme. Não vive mais”, lamenta.
Uma outra mulher, que pede para não ser identificada por ter medo de perder seu emprego, disse ter acabado de ter as férias antecipadas pela Vale em uma das ações sociais, e não sabe o que vai fazer. “Se todos daqui forem embora, meu emprego vai acabar. Já está difícil, porque moro de aluguel e o dono da casa está vendendo o imóvel para a Vale. Um aluguel em Brumadinho, de casa simples, aumentou demais. Está em R$ 600 ou mais”, afirma a funcionária.
‘Se forem embora, vamos ter de fechar’
Em um dia de semana normal, o único ponto de comércio que foi encontrado em funcionamento pela equipe do EM foi o restaurante ao lado do Centro Comunitário. A clientela ali se resume a 40 funcionários de uma empresa que presta serviços para a Vale e que podem ir embora assim que o contrato terminar ou for suspenso. Os donos do estabelecimento, que são idosos e têm doenças crônicas, estão recolhidos por causa da COVID-19, restando aos filhos preparar as refeições em um fogão a lenha e manter o atendimento.
“Chegávamos a servir 180 pessoas antes do rompimento. Fomos a zero depois que as buscas ficaram só com os bombeiros e as pessoas foram indo embora. Sobrou pra gente alimentar os funcionários dessa firma. Se forem embora, pelo jeito, vamos ter de fechar as portas”, lamenta Gleice Cristina Monteiro, de 41, que está tocando o negócio. Com a COVID-19, seu trabalho ficou ainda mais difícil. “Tudo do que precisamos, temos de ir a Brumadinho buscar. E a maioria dos supermercados limita as compras. Só pode três garrafas de óleo, três sacos de arroz... Tudo está mais caro para nós”, lamenta.
Durante os esforços pelo resgate de pessoas atingidas pela avalanche de mais de 9 milhões de metros cúbicos de rejeitos que desceram após o rompimento da Barragem B1 da Mina Córrego do Feijão, o povoado de mesmo nome tinha movimentação intensa. Equipes de socorristas, policiais, bombeiros, voluntários, funcionários da Vale, moradores e parentes de pessoas desaparecidas congestionavam as apertadas vias desde o dia 25 de janeiro de 2019.
Mas o tempo passou. As buscas localizaram quase todos os mortos, restando ainda recuperar 11 corpos. Quando se instalou a ameaça da COVID-19, até as operações de busca dos bombeiros foram interrompidas. O ambiente, antes movimentado, agora se encontra desolado. Difícil definir qual o cenário pior.
A pequena Igreja de Nossa Senhora das Dores, que serviu de posto de comando e ainda tem uma placa de agradecimento aos bombeiros que trabalharam na operação, agora está fechada. O campo de futebol que sediou um pouco do lazer da comunidade e chegou a receber pousos e decolagens de até 13 helicópteros em num só dia também está vazio. No meio dele restou esquecida uma caçamba cheia de placas de grama antiga e lixo. Atrás da igreja, o pasto amplo que recebeu tendas da Polícia Civil para funcionar com posto avançado do Instituto Médico-Legal (IML) e estacionamento de viaturas também mudou. Agora, se transformou em matagal alto e fechado.
O destino de alguns dos corpos de moradores do Córrego do Feijão mortos pelo desastre foi o pequeno cemitério Recanto da Saudade. Nem o espaço de última homenagem a essas vítimas escapou da atual onda de abandono. Lá o mato também cresce alto, contido apenas pela muralha rústica de pedras, encobrindo de esquecimento as lápides com os nomes dos filhos da terra. Uma das que ainda se podem ler exibe mensagem que lembra a efêmera condição humana: “Eu fui quem tu és. Tu serás quem eu sou”.
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