Correio Braziliense
postado em 08/05/2020 11:06
Os primeiros casos de contaminação pelo coronavírus começavam a surgir em Pernambuco quando o seminarista Ítalo Maciel Lima, 29 anos, presenciou uma das piores cenas da vida dele. Um adolescente e quatro adultos em situação de rua comiam restos de macarrão entregues por um funcionário de um restaurante. O alimento não estava mais em um recipiente. A sacola onde foi doado tinha acabado de rasgar. O macarrão vinha direto do chão. Ia para as bocas, sem talheres. Cheirava à comida estragada. Àquela altura, a fome já começava a tomar conta da população de rua.
As comunidades, como são chamados os grupos religiosos que alimentam essas pessoas, estão afastadas. Não podem promover aglomeração, como determina o decreto do governo do estado. Mas fome, como é sabido, não espera. Não saciada, mata. Ítalo resolveu reagir. Juntou-se a outras pessoas e colocou em prática o evangelho pregado por pessoas que lhe inspiram, como dom Helder Câmara e irmã Dulce. A cena chocante motivou ação. E transformação. Mesmo que de poucos.
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“Quando percebi que a população de rua ficou completamente desassistida com a suspensão das comunidades, pensei logo em medidas emergenciais de higienização e alimentação. Eu fiquei desesperado. Observei de longe a cena grotesca acontecendo perto da capela e me aproximei para ver o que estava acontecendo. Eles pareciam nem se importar com aquela condição. Apenas disseram que aquilo é o que tinham conseguido. Foi triste. Não sabia o que fazer. Como pode isso acontecer com as pessoas?”
Primeiro, Ítalo providenciou, com a ajuda de outras pessoas, um sopão. O alimento passou a ser distribuído, mas com a condição de cada uma daquelas pessoas não se aglomerar ou mesmo fazer fila. As pessoas eram orientadas a comer em seus espaços, ocupados ao ar livre, na Praça Maciel Pinheiro, perto da capela. Antes de se alimentarem, recebiam borrifadas de álcool em gel nas mãos para minimizar as possibilidades de contaminação pela Covid-19.
A empatia de Ítalo foi ainda mais longe. Virou convivência diária com as pessoas em situação de rua, em uma mesma casa. Pediu, e logo ganhou, apoio da Arquidiocese de Olinda e Recife. Colocou em prática, com a ajuda de várias mãos, um espaço de abrigamento. Chama-se Casa de Acolhimento e Misericórdia. Fica na Rua Pirajá, 140, no bairro de Afogados, no Recife. Ítalo, então, passou a morar no endereço. Junto com mais três voluntários - uma pessoa de São Paulo e dois refugiados da Colômbia, coordena o espaço, dedicado apenas ao público masculino. O abrigo oferta 16 vagas. Hoje, seis estão ocupadas.
A equipe da Casa de Acolhimento recebe as pessoas, faz triagem, observa documentação, entra em contato com a família e, se houver necessidade, encaminha para a Fazenda Esperança pessoas dependentes de drogas que desejam tratamento. A equipe do Centro de Atendimento Psicossocial do bairro também atende às pessoas encaminhadas pela casa. “Temos uma rotina, somos como uma família. Temos galinheiro, horta, todos dividem as tarefas, assistimos filmes, rezamos, temos livros”, conta o seminarista.
Ítalo conta enfrentar o medo de ser contaminado pela Covid-19. Mas decidiu seguir. Ser coerente com suas referências de vida. “Nesse momento, me vi em uma situação que tive que ter coragem. A gente está diante de uma pandemia onde precisamos nos resguardar, mas também precisamos de disposição para ir à luta. Esse sentimento me invadiu e me incentivou a seguir em frente.”
O centro, pensa Ítalo, deve continuar mesmo com o fim da pandemia. A coordenação já pensa em projetos de qualificação profissional para as pessoas abrigadas. O espaço tem sido custeado por vários católicos e organizações religiosas. A Vigilância Sanitária da Prefeitura do Recife orientou as instalações. O bispo auxiliar de Olinda e Recife, dom Limacêdo Antônio da Silva fez as “costuras” junto a outros realizadores para implantar o espaço.
A casa alugada tem três quartos, quatro banheiros, sala, capela, cozinha, varanda, quintal e garagem. Os cômodos foram mobiliados com doações da Cáritas Brasileira Nordeste 2, Paróquia Santo Antônio dos Prazeres, Comunidade Obra de Maria e da Prefeitura do Recife. A alimentação neste primeiro mês foi garantida pela Paróquia Nossa Senhora da Paz e pelo projeto Tribunal Solidário do Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE). O primeiro aluguel de R$ 1.400 foi pago pelo padre Damião Silva, o do próximo mês, que vence no dia 10 de maio, está dependendo da captação de voluntários.
Agora, a iniciativa precisa continuar. Quem quiser ajudar, pode pesquisar o perfil da Casa de Acolhimento e Misericórdia, no Instagram. Há várias formas de chegar junto, fazer a diferença nesse momento caótico para o mundo.
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