Brasil

Quem manda no lockdown? Diferentes instâncias brigam pelo poder de decisão

As divergentes orientações e os discursos opostos dos representantes eleitos confundem a população e atrapalham a integração

Além de encarar uma guerra contra o novo coronavírus, que mata cada vez mais, o Brasil vivencia uma disputa constante entre as instâncias dos entes federativos. Como se já não bastasse o tamanho continental do país e as diferenças entre os estados e municípios, as divergentes orientações e os discursos opostos dos representantes eleitos confundem a população e atrapalham a integração, tão necessária na situação de emergência. Essa semana, a disputa que gira em torno do isolamento social ganhou novos capítulos. Enquanto o presidente Jair Bolsonaro inseriu academias e salões de beleza na lista das atividades essenciais, parte dos governadores repudiou a ação e informaram que não irar liberar os estabelecimentos. E muitas prefeituras expediram decretos municipais autorizando a reabertura.

Na prática, a inclusão feita por Bolsonaro não é como uma liberação automática desses serviços. Isso porque, em abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os governos estaduais e municipais são quem definirão as medidas de isolamento e restrição de atividades dentro das respectivas fronteiras. O resultado não agradou o chefe do Executivo, que busca garantir a mudança por outros meios. “Já que não querem abrir, vou eu abrindo”, declarou o presidente a um simpatizante, na entrada do Palácio da Alvorada, ao dizer que adicionaria outras atividades à lista de essenciais.

A advogada constitucionalista Vera Chemim explica que, com a decisão do STF, estados e municípios ficam autorizados a decretar as próprias medidas, sem a autorização da União, desde que as medidas tenham respaldo técnico e científico e não exorbitem as respectivas competências. “Um prefeito pode decretar o lockdown do seu município, mas não pode fechar uma rodovia federal que passar por ele”, exemplifica.

A mestre em administração pública pela FGV-SP explica que o ideal é que exista uma relação de cooperação técnica e financeira entre União, estados e municípios, mas lembra que cada um deles têm autonomia. “O Brasil é uma República Federativa, o que significa que estados e municípios tem autonomia para determinar as medidas que bem entenderem e a partir das respectivas realidades regionais e locais, desde que atendam às condições impostas pelo STF”, ressalta.

Na contramão do que pede a Constituição, os ruídos entre o presidente e governadores crescem e podem ser observados, também, dentro do próprio governo. Enquanto Bolsonaro insiste na defesa do isolamento vertical, no qual apenas pessoas do grupo de risco ficariam isoladas, o Ministério da Saúde nunca se posicionou a favor desta medida. Em meio aos impasses, o ex-ministro da Saúde, Nelson Teich, deixa o cargo sem ao menos divulgar uma diretriz de isolamento para orientar governadores e prefeitos. Nos 28 dias em que exerceu o cargo, ele não obteve êxito em formar um consenso entre União, Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).

Judiciário
Sem harmonia, o poder Judiciário ganhou um espaço relevante no cenário e é constantemente acionado. Ministérios públicos de diversos estados provocaram os tribunais na intenção de acelerar a tomada de decisões mais rígidas por parte dos gestores. Este foi o caso do MP do Maranhão, Amazonas e Pernambuco, por exemplo.

“Esta é uma questão bastante complexa. Temos um sistema judiciário aberto a receber demandas, não só do Ministério Público, mas também de associações, da OAB, de partidos políticos e do próprio cidadão que se sinta individualmente afetado. Isso é muito importante, que demandas que invocam alegações de atos ou omissões arbitrários do poder público possam ser apreciadas pelo Judiciário”, avalia a professora da FGV Direito Rio, Patrícia Sampaio.

No entanto, não é papel do Judiciário substituir o gestor nas decisões relacionadas à saúde pública. “O papel do Judiciário reside em controlar situações que claramente se afastem do dever de preservação da saúde pública, não sendo seu papel substituir o gestor nas decisões relacionadas à política de saúde e como implementá-la em situação de pandemia”, alerta Patrícia. O assunto, assim como a quarentena, ainda parece longe de um fim, sobretudo pela falta de uma coesão entre os entes, situação que só confunde a população que, mal orientada, pode ser prejudicada.