Correio Braziliense
postado em 21/05/2020 04:03
Após a recusa de dois ministros da Saúde, que optaram por pedir demissão para não assinar o documento, coube ao general Eduardo Pazuello, que assumiu a pasta de forma interina, liberar a cloroquina para todos os pacientes de covid-19. Na contramão do que apontam estudos científicos recentes e da própria Organização Mundial da Saúde (OMS), o Ministério da Saúde divulgou, ontem, a orientação do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina. A mudança, prometida há algum tempo pelo presidente Jair Bolsonaro, indica o medicamento para pacientes com sintomas leves da doença e vai em direção oposta à da maioria dos países.
A justificativa para o direcionamento é de que, mesmo em solo desconhecido, o risco compensa. É o que afirmou o secretário-executivo interino, Élcio Franco. “Se nós esperarmos que sejam seguidos todos os passos para que tenhamos evidências para iniciar um tratamento terapêutico, já vai ter acabado a epidemia e milhares de pessoas morrerão”. A fala veio em resposta à declaração da OMS de que a droga, além de poder produzir efeitos colaterais, não tem eficácia comprovada contra o coronavírus.
Segundo o diretor de emergências da OMS, Michael Ryan, as substâncias só devem ser usadas contra a doença em ensaios clínicos. “Até esse estágio, nem a cloroquina nem a hidroxicloroquina têm sido efetivas no tratamento da covid-19 ou nas profilaxias contra a infecção pela doença. Na verdade, é o oposto”, disse, ao ser questionado sobre o protocolo estabelecido no Brasil.
A secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro, explicou que a motivação para o novo protocolo é garantir o direito do acesso ao remédio à população em geral. Segundo ela, enquanto brasileiros de classe social mais alta têm o direito da prescrição do medicamento, há uma limitação do acesso à classe mais desfavorecida ao tratamento. “O que queremos é tornar o princípio da equidade garantido pelo SUS como uma realidade para todos os brasileiros”, afirmou.
Mayra ainda lembrou que o Ministério da Saúde já adotou a indicação da cloroquina em protocolos anteriores para tratamento do zika vírus e da chikungunya. “Nós estamos falando de uma guerra onde nós precisamos disponibilizar o direito que é clamado pelos brasileiros a receber uma medicação que em vários estudos clínicos têm mostrado evidência”, completou.
Na prática, o que a normatização traz é um esclarecimento por parte do ministério, órgão responsável por acompanhar, controlar e avaliar as ações e os serviços de área, desde que respeitadas as competências estaduais e municipais, como estabelece a Constituição. Além disso, garante que o fornecimento e distribuição da medicação sejam de responsabilidade da pasta.
Interesse político
Apesar da mudança ter sido requisitada diversas vezes por Bolsonaro e ter motivado o pedido de demissão do ex-ministro Nelson Teich, o secretário-executivo interino afirmou que o novo protocolo não foi feito “somente por determinação de alguma autoridade. Esse trabalho interno feito não foi, em momento algum, negligenciado ou foi conduzido somente por determinação de alguma autoridade”, pontuou.
De acordo com Élcio, a nova orientação foi feita com “uma larga fonte de referência” e acordada “de maneira consensual” com todas as secretarias da pasta. A orientação divulgada pelo órgão, no entanto, não contém assinatura. O número 2 da pasta garantiu, contudo, de que o documento foi “assinado e convalidado” por todos os secretários. “Houve participação de vários técnicos do ministério. É um trabalho que vem sendo feito há um bom tempo, que está sendo pactuado com Conass (leia insert nesta página) e Conasems. Tem uma larga fonte de referência e um trabalho que foi acordado de maneira consensual com todas as secretarias”, reforçou.
Pelo conteúdo do texto, a orientação do Ministério da Saúde não deve extrapolar o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM) que, em 23 de abril, divulgou um parecer estabelecendo critérios e condições para a prescrição de cloroquina e hidroxicloroquina a pacientes confirmados com covid-19. Não cometerá infração ética o médico que utilizar o remédio em pacientes graves e já sob uso de ventilação mecânica, assim como aqueles que estiverem também com situação agravada e com indício de piora, a caminho da UTI. Ainda, é permitido o uso no caso de paciente com sintomas leves, em início de quadro clínico, desde que exista diagnóstico confirmado.
Produção em massa
Além de liberar a cloroquina para doentes de covid-19 em estágio inicial, o governo está empe-nhado na compra do medicamento, com dispensa de licitação. Ontem, mais quatro empresas foram incluídas para fornecer a droga, com contratos no valor total de mais de R$ 313 mil. O Ministério da Saúde afirmou, ainda, que intensificará a produção da substância nos laboratórios que trabalham com o governo.
De acordo com o coordenador-geral de Assistência Farmacêutica de Medicamentos Estratégicos, Alvimar Botega, 2,9 milhões de comprimidos já foram disponibilizados. A quantidade foi suficiente para tratar quase 164 mil pacientes.
“Temos, ainda, em estoque, 1.462.000 comprimidos, suficientes para tratar 81.222 mil pacientes com covid-19. O Exército também vem fazendo produção desse medicamento e destinará cerca de 1,3 milhão de comprimidos para a pasta. O órgão também tem negociação com a Fiocruz para a produção de mais 4 milhões de comprimidos de cloroquina”, destacou Botega.
Conass rebate ministério
Em nota oficial, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) afirmou que não houve participação técnica e pactuação tripartite em relação à orientação do uso da cloroquina no tratamento da covid-19, como afirmou o secretário-executivo substituto do Ministério da Saúde, Élcio Franco. “Ao contrário do que foi divulgado em entrevista coletiva no dia de hoje (ontem), deixa claro que tais orientações são de única responsabilidade do Ministério da Saúde”, diz o documento, assinado pelo presidente do conselho, Alberto Beltrame. O texto ainda reforça a importância da discussão de temas que se relacionam diretamente à estratégia de enfrentamento à pandemia de modo tripartite. “Por que estamos debatendo a cloroquina e não a logística de distanciamento social?”
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