Brasil

Judiciário deve evitar excessos da União, diz professora de direito da FGV

A guerra contra um único agente viral dividiu o modelo fundamentalmente tripartite do Sistema Único de Saúde (SUS) que, pela falta de alinhamento, criou uma incógnita na população brasileira

Correio Braziliense
postado em 24/05/2020 07:00

Patrícia Sampaio da FGVNão é tarefa fácil tentar comparar o Brasil com demais países em meio à pandemia. Essa prerrogativa, usada como argumento pelos diversos representantes que já se sentaram nas cadeiras principais do Ministério da Saúde nos últimos dois meses, tem seu fundo de verdade. Até aqui, diferentemente do que ocorre em outras nações, o enfrentamento ao novo coronavírus está servindo como pano de fundo de uma disputa ideológica e política. A guerra contra um único agente viral dividiu o modelo fundamentalmente tripartite do Sistema Único de Saúde (SUS) que, pela falta de alinhamento, criou uma incógnita na população brasileira. Afinal, quem ouvir? Diante da incapacidade de diálogo, o Poder Judiciário ganha destaque, sendo acionado para fazer o meio de campo e realinhar competências entre os entes federativos. Pesquisadora do Centro de Pesquisas em Direito e Economia (CPDE) e professora da FGV Direito Rio, Patrícia Sampaio levanta o debate do papel do Judiciário no âmbito da pandemia.

 

O que gera debate no contexto da covid-19 quanto à divisão de competências entre União, estados e municípios?

A principal controvérsia reside em definir onde traçar a linha divisória entre o que é matéria de norma geral e, portanto, competência da União Federal, e o que fica no âmbito dos estados e dos municípios. Em sede de competência legislativa concorrente, como é o caso da defesa da saúde, a competência da União é para a edição de normas gerais, cabendo a estados e municípios complementá-las em atenção às peculiaridades estaduais e locais.

 

Qual o desafio do Poder Judiciário na resolução desses conflitos inéditos e, portanto, sem jurisprudência?

O desafio consiste justamente em traçar essa linha divisória, em matéria de defesa da saúde no contexto da pandemia, no que a ciência orienta no sentido de medidas restritivas à liberdade individual, assim como às relacionadas ao isolamento social. O Poder Judiciário deve, simultaneamente, assegurar que todos os demais entes federativos respeitem às normas gerais federais (desde que essas sejam válidas) e, ao mesmo tempo, evitar que a União Federal cometa excessos nessa normatização, tratando, a título de norma geral, assuntos que são eminentemente locais. Eles devem ser deixados a estados e municípios no âmbito da competência concorrente.

 

Já podemos observar alguma tendência de resposta do Judiciário que, ao ser provocado, tem se posicionado de maneira mais “unificada”?

Falar do Judiciário de forma ampla é muito difícil porque são muitos tribunais e instâncias e, no meu sentir, ainda não houve tempo para a formação de entendimentos consolidados. Todavia, é relevante ressaltar o papel do Supremo Tribunal Federal (STF) de orientação da jurisprudência e, nesse aspecto, me parece que já é possível se falar em uma inclinação. No STF, parece-me estar desenhando-se uma tendência de assegurar que a situação da pandemia e dos respectivos sistemas de saúde são distintos para cada localidade e, assim, que são os estados e municípios as autoridades competentes para tomar medidas relacionadas ao funcionamento de atividades econômicas e de isolamento social em atenção às peculiaridades locais, no âmbito da competência concorrente. O tema do isolamento social, por exemplo, está diretamente relacionado à situação do sistema de saúde local, dependendo de dados sobre quantos leitos de enfermaria e UTIs estão disponíveis, como está a curva de casos confirmados e óbitos etc.

 

Observamos uma movimentação de ministérios públicos estaduais que protocolam ações pedindo medidas mais duras de isolamento, como em Pernambuco, Amazonas e Maranhão. O que essa provocação revela, modifica e influencia?

Esta é uma questão bastante complexa. Temos um sistema judiciário bastante aberto a receber demandas, não só do Ministério Público, mas também de associações, da OAB, de partidos políticos e do próprio cidadão que se sente individualmente afetado. Isso é muito importante, que demandas que invocam alegações de atos ou omissões arbitrárias do poder público possam ser apreciadas pelo Judiciário. De outro lado, no sistema constitucional de separação de poderes, o Judiciário não tem competência para desenhar políticas públicas nem para tomar decisões que caracterizem atos de gestão administrativa, que ficam a cargo do Poder Executivo. O papel fundamental do Poder Judiciário consiste em controlar a constitucionalidade e a legalidade dos atos praticados por esses gestores e, nesse sentido, impedir que haja violação ao núcleo essencial dos direitos dos cidadãos. Por isso, em uma situação limite — por exemplo, em uma localidade na qual não haja mais leitos disponíveis, esteja ocorrendo aumento na quantidade de casos e de óbitos, ou seja, esteja caracterizado o colapso (efetivo ou iminente) do sistema de saúde — parece-me que a sociedade pode recorrer ao Poder Judiciário para que sejam tomadas medidas de isolamento social. Mas gostaria de esclarecer: o papel do Judiciário reside em controlar situações que claramente se afastem do dever de preservação da saúde pública, não sendo seu papel substituir o gestor nas decisões relacionadas à política de saúde e como implementá-la em situação de pandemia.

 

As ideologias políticas têm interferido nesse contexto? Exemplo: ao ampliar o rol de atividades essenciais, o presidente Jair Bolsonaro disse a apoiadores: “Já que não querem abrir, vou eu abrindo”. Esse tipo de discurso pode atrapalhar a adesão da população a medidas mais rígidas adotadas no estado? 

As visões antagônicas expressadas pelo presidente e pelos governadores quanto às medidas de isolamento social trazem insegurança jurídica à população, que já se encontra em situação muito adversa por ter que lidar tanto com as incertezas decorrentes do novo coronavírus quanto com a realidade econômica, em um país que tem enorme contingente de microempreendedores e trabalhadores informais. Essa contradição no trato do tema pelos governantes polariza discursos e gera fundadas dúvidas na população sobre qual é a conduta correta a seguir. Exemplificando, no município do Rio de Janeiro existem, no momento, alguns bairros nos quais foram adotadas medidas bastante restritivas, como proibição de andar em calçadões e praças, e de entrada e saída de veículos particulares que não sejam de moradores — o que está sendo chamado de lockdown. Uma barbearia situada neste bairro deve ou não funcionar? O decreto presidencial permite, desde que seguindo as orientações do Ministério da Saúde, mas o decreto municipal veda. O decreto presidencial confunde até mesmo no uso das palavras. 

 

Como equilibrar a questão de autonomia entre entes federativos e uma resposta unificada entre eles? Está faltando isso? Como fortalecer essa integração sem ferir autonomia?

A ideia de resposta unificada não é de “respostas idênticas”, mas, sim, de respostas coordenadas e que não sejam conflitantes. Para isso, é preciso que a União Federal se mantenha dentro da sua competência de expedir apenas comandos gerais em matéria de defesa da saúde, preservando a autonomia dos estados na gestão do tema em seus territórios. Dessa forma, estados e municípios poderão tomar medidas diferentes na extensão e nos limites de suas necessidades, considerando as realidades igualmente distintas do avanço da pandemia e dos sistemas de saúde em cada um, sem que isso seja entendido pela sociedade como decisões contraditórias. E, sobretudo, existe integração sem ferir autonomia quando os dados científicos dão a tônica da conduta. A autonomia dos entes federativos sairá fortalecida se as leis estaduais e municipais, assim como os atos de governadores e prefeitos, estiverem embasadas em dados da área da saúde e em evidências científicas. O direito administrativo exige que todo gestor motive a sua decisão, e a lei estabelece que motivar significa explicitar os fatos e os fundamentos jurídicos, bem como mostrar que guardam coerência entre si e com a decisão adotada.

 

 

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