O coronavírus é mais um ingrediente perigoso a aumentar o chiado de alerta da panela de pressão do sistema prisional brasileiro. O seu maior perigo, apontam especialistas, é o poder que tem para reagir de forma explosiva às demais fragilidades das cadeias superlotadas, somadas a critérios de higiene e distanciamento incompatíveis com o comportamento preventivo. E embora avance mais lentamente do lado de dentro dos muros farpados das instituições, tal como quem está fora, os internos não têm anticorpos para lidar com a doença. Além disso, se a parcela de idosos é pequena, a população carcerária do Brasil conta com alto índice de pacientes com tuberculose, HIV e sífilis, cerca de 250 mil. E a restrição de visitas, principal medida para manter a saúde dessas pessoas, pode ser catalisador para rebeliões.
A segunda principal medida são as aplicações de testes, recomendadas em todo o mundo como forma de conter o coronavírus: foram ministrados mais de 2,1 mil. O Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, indica que, até dezembro de 2019, o sistema prisional brasileiro contava com 755.274 presos para 442.349 vagas. São 312.925 detentos acima do limite do sistema. Até sexta-feira, segundo balanço do Depen, eram 1.079 infectados, 670 casos suspeitos e 34 mortes. A primeira morte ocorreu em 17 de abril. Um homem de 73 anos preso em uma unidade para idosos, o Instituto Penal Cândido Mendes, no centro do Rio de Janeiro. Mas, entre as vítimas, também está um detento de 29 anos.
Por região, graças ao Distrito Federal, o Centro-Oeste é a região com maior incidência. A capital federal concentra mais da metade do total de infectados no país, com 608 diagnósticos positivos e uma morte. O Sudeste concentra o maior número de mortos: 20 no total. A região Sul é a que tem menor incidência do coronavírus em presídios, com seis detecções.
Para demonstrar o risco de infecção em presídios, a doutora em ciências sociais e especialista em política criminal comparada e professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) Cristina Zackseski destaca que o número de presos com diagnóstico positivo na Papuda cresceu rapidamente. “Há um mês um interno estava infectado no DF, hoje são mais de 200”. Ela sugere, para reduzir o risco de rebelião, que presos mantenham contato por com parentes por telefone e videoconferência. Também professora da UnB, a especialista em segurança pública e justiça criminal Haydée Caruso fala em um cenário desastroso para os presídios. “O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem feito uma discussão importante sobre o assunto, recomendando que as pessoas que tenham idade avançada sejam colocadas em regime domiciliar. Isso já está acontecendo em algumas unidades, mas não com todos os presos em grupo de risco. Não se trata de ver quem tem que cumprir mais ou menos anos de pena. É questão humanitária e civilizatória, e temos que pensar não só nos internos, mas também nos agentes penitenciário”, coloca a socióloga.
Dados
Ela destaca o perigo de agentes levarem o vírus para dentro do sistema. “O CNJ tem discutido, produzido notas técnicas, falando da urgência de uma tomada de decisão. A cada dia o cenário fica pior. Já temos vários agentes infectados. E agora, começa a morte entre os internos. Há rumores de rebeliões dentro do sistema. Só que não podemos demorar para tomar decisões. O mais importante é a união de estados e governo federal em torno de ações de combate ao vírus dentro do sistema penitenciário. Ou vamos ter muitos corpos. Fora do sistema já é uma questão, mas falamos de um contexto adverso em que eles já estão em situação precária”, alerta.
A favor do combate, o Brasil tem os dados do sistema prisional, que são atualizados e seguros. Para a estudiosa, é importante que o governo utilize esses dados. A princípio é o que está acontecendo, já que o Depen disponibiliza tanto os números do avanço do vírus quanto os de superlotação. A sugestão do Conselho Nacional de Justiça de liberação de parte dos presos mais velhos para cumprirem a pena em regime domiciliar, no entanto, foi motivo de crítica por parte do governo. “O diagnóstico está pronto, está feito, e temos expertise, nos estados, de quem trabalha com o tema. O que a gente precisa são de coordenadas e tomada de decisão em um tempo que é o do ontem”, aponta Haydée.
“As rebeliões são um temor. Já temos muitos problemas para resolver. E tudo que a gente não precisa nesse momento é ter uma explosão de rebeliões. O que os gestores puderem fazer para minimizar, como o sistema nacional de inteligência, monitoração em tempo real e mediação de conflitos. Diante da gravidade da pandemia, temos que diminuir essas possibilidades”, destaca.
Isolamento como arma
Doutor em políticas públicas pela George Washington University e especialista em segurança pública, George Felipe de Lima Dantas ressalta que conta a favor do sistema prisional o fato de os presos já estarem isolados. “A palavra de ordem é distanciamento social e quarentena. Intuitivamente, tendo essa noção, quem está em qualquer ambiente isolado está mais seguro e mais distante da contaminação. A questão específica do sistema prisional é a superlotação crônica. Precisamos entender que estar apartado é bom, incluindo os presos. Mas, quando esse apartado vem com problemas crônicos de superlotação, as coisas ficam diferenciadas do que deviam ser”, pondera. “Daí a lógica do cuidado em não receber visitas. Não receber potenciais vetores que contaminariam um sistema que é fechado”, completa.
Ele defende que o Ministério da Justiça tem agido para evitar a proliferação do coronavírus E se mostra pragmático, mas otimista. “Ninguém acerta tudo e ninguém erra tudo. Vai ter um lado que não vai ser 100%.” Para o especialista, a idade dos presos também amenizará os riscos. “É um sistema nacional com investimento precário. A doença da covid-19, você tem faixas etárias imunes, pelo contágio de não expressão. E preso, estatisticamente, é um homem jovem do sexo masculino. Preso mulher e idosa não é regra, por exemplo. Tem que estabelecer bem o diferencial para ver o que tem de ruim e o que tem de bom. Um fator muito adverso é um preso idoso”, afirma.
Critério sanitário
Dantas aponta, como dificuldade, por outro lado, a necessidade de rápida mudança de paradigma na percepção dos presos dentro do sistema. “Tem um critério que é o da lei de execuções penais. Não é um critério sanitário. Vejo um fator adverso, a uma política nesse momento. A lei de execuções penais tem que valer sempre. Mas a política do critério sanitário não é exatamente o critério de execuções penais. E será aplicada à luz da lei de execuções penais. E temos enfrentado a falta de norma para esse momento que a humanidade vive. Talvez, à luz de um critério que está apenas emergindo, que é o dos grupos de risco, devesse passar no Congresso uma legislação específica para a semiliberdade. E outro problema é que muitos presos não têm para onde voltar. Alguns não têm família, não têm para onde ir. Se o mercado de trabalho não é mais favorável para os que estão soltos, imagine para os apenados. É uma questão dinâmica, de grande complexidade. Estamos conhecendo o vírus e ele está nos conhecendo agora.”
Três perguntas para
Cristina Zackseski, professora da Faculdade de Direito da UnB, doutora em ciências sociais e especialista em política criminal comparada
Quais são os principais desafios do sistema na visão da senhora, tendo em vista a pandemia do coronavírus? Como a crise sanitária ressaltou as fraquezas do sistema prisional brasileiro?
As características do sistema prisional brasileiro são incompatíveis com padrões mínimos de gestão. Depois da Recomendação 62 do CNJ, a mídia noticiou que 30 mil presos foram liberados. Mas se isso for verdade, ainda faltam 260 mil (ou mais) para conseguirmos ficar dentro do limite de vagas, e isso, obviamente, não garante higiene e prevenção de contágio. Não há espaço físico compatível com critérios de higiene e distanciamento requeridos (dois metros). Além disso, há o problema do contágio além dos muros, pois 83.604 servidores entram e saem das prisões brasileiras todos os dias.
A epidemia traz risco de rebelião no sistema, tendo em vista tanto a saúde dos presos quanto a proibição de visitas, por exemplo? Como lidar com os presos nesse momento?
Sim. Há possibilidade de rebeliões. Os presos devem ter acesso a ligações telefônicas e/ou videoconferência. Eles precisam ver e ouvir os familiares e vice-versa. Na Catalunha, foi a primeira coisa que o sistema prisional providenciou quando a pandemia começou, só para citar um exemplo que se repetiu e se repete em outros países e regiões.
Como a senhora vê o argumento de que os presos estão mais seguros contra o vírus por estarem isolados do resto da sociedade? E o argumento de que, em sua maioria, são jovens e, por isso, correm menos risco?
Os números da evolução dos casos na Papuda mostram que este argumento não é verdadeiro. Há um mês, um interno estava infectado no DF, hoje são centenas. A estimativa antes da pandemia era de que já havia 250 mil presos com alguma doença (tuberculose, HIV, sífilis, sarna) no sistema penal brasileiro. E o grupo de risco do coronavírus é composto por: idosos, hipertensos, diabéticos, portadores de doenças crônicas, gestantes e lactantes, pacientes com câncer e cardíacos. As gestantes e lactantes foram liberadas? É preciso lembrar que a pena não pode atingir os direitos que não estejam relacionados à privação de liberdade. A saúde, a vida e também a comunicação são direitos que devem ser protegidos neste momento.
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