Brasil

País tem 64 cidades sem casos de covid, mas falta de estrutura as preocupam

Elas representam 1,2% dos municípios brasileiros e a maioria tem menos de 10 mil habitantes cada uma. Muitas ergueram barreiras físicas para impedir a entrada do vírus

Correio Braziliense
postado em 02/08/2020 07:00

Homem limpa cidade por causa da covid-19País de dimensões continentais, o Brasil, em cinco meses, viu o novo coronavírus dominar o território, começando pelos grandes centros urbanos, e se expandir rapidamente para os municípios mais distantes da movimentação das metrópoles. Segundo levantamento do Ministério da Saúde, o processo de interiorização da covid-19 só deixa de fora 64 cidades que, sem grandes estruturas para lidar com um eventual surto, isolam-se com barreiras físicas para impedir a entrada do vírus.

 

Os municípios que continuam mantendo a doença fora das fronteiras representam pouco mais de 1,2% do total brasileiro e a maioria tem menos de 10 mil habitantes cada um. Juntos, não somam 350 mil pessoas, pouco mais do que a população de Pelotas (RS). Eles têm como característica a divisão quase por igual entre população rural e urbana. É o caso de Santana, na Bahia, o município mais populoso do Brasil que ainda não possui casos da covid. Para proteger os 27 mil moradores, a prefeitura impôs uma série de medidas.

 

“Começamos em março, com a suspensão do funcionamento de todas as atividades comerciais, exceto as essenciais. Ficamos 21 dias com tudo fechado. Começamos cedo, porque não conhecíamos ainda a realidade do município, não sabíamos se tinha alguém contaminado. Precisávamos montar a estrutura da unidade de referência para atendimento de eventuais pacientes e as barreiras sanitárias”, explicou o prefeito de Santana, Marcão Cardoso. 

 

Quem chega à cidade passa por um controle rigoroso, com aferição de temperatura corporal e assinatura de termo de comprimento da quarentena, obrigando-se a ficar 14 dias em isolamento. O mais próximo que a doença chegou da cidade foi por meio de uma moradora de um município vizinho. “Ela foi honesta e declarou estar com a doença, achando que poderia cumprir a quarentena aqui, mas foi orientada a voltar para a cidade de origem”, disse o prefeito.

 

Atualmente, Santana conta com 20 leitos específicos para atender a casos suspeitos ou confirmados de covid — 18 com estruturas de enfermaria e dois com respiradores —, além da estrutura para deslocar um paciente grave que precise de assistência mais específica. Continuam suspensas atividades que provoquem aglomerações, como missas e cultos, eventos, e a feira livre. O acesso ao centro da cidade também é limitado e, em locais como bancos e lotéricas, foram instaladas tendas para que as pessoas façam as filas respeitando o distanciamento. O uso de máscaras também é obrigatório. Qualquer descumprimento pode ser relatado pelo disque-denúncia da cidade. 

 

“Em alguns momentos, somos vistos como radicais, mas o intuito é manter o resultado que temos até agora. São cinco meses desde do primeiro caso, e nós ainda estamos livres dessa pandemia. É motivo de comemoração. Ao mesmo tempo, a cidade está pronta, se houver alguns casos, para dar o encaminhamento. O envolvimento da população tem um papel fundamental”, detalhou Cardoso. 

 

Testagem

Até agora, 109 pessoas na cidade foram testadas e tiveram resultado negativo para a covid. Todas foram monitoradas e precisaram se isolar mesmo após a negativa, obtida, na maioria dos casos, por testes sorológicos. Apenas oito exames do tipo molecular foram realizados até o momento. O enfermeiro Rafael de Jesus Lopes, 27 anos, foi um dos primeiros. Atuando na Estratégia Saúde da Família, tem contato com pacientes e, logo no início da pandemia, desenvolveu uma forte gripe, acompanhada de tosse, dores de cabeça, dores pelo corpo e falta de ar. 

 

“Soma-se a isso o fato de eu já ter o sistema imunológico comprometido, por ter artrite reumatoide juvenil, ser asmático e ter feito cirurgia bariátrica há menos de um ano. Fiquei afastado do trabalho, entrei em contato com a coordenação da vigilância epidemiológica e passei a ser monitorado com visitas domiciliares e ligações até o dia marcado para coleta do material. Recebi ligação de psicólogo, visita médica e medicamentos”, contou Rafael. 

 

À época, a doença ainda não tinha provocado 10 mil mortes no país, e o cenário era de incerteza e desconhecimento na cidade. “Percebo que as pessoas só começam a entender o nível da gravidade dessa doença quando algum familiar passa por ela. Quando não se confirma nenhum caso, a população vai esquecendo dos cuidados básicos, e acredito que é preciso continuar se cuidando”, relembrou o enfermeiro.

Atendimento precário

O medo de precisar transferir pacientes para cidades maiores impôs à cidade de João Dias (RN) o objetivo de atravessar a pandemia sem registro da doença, até porque não há uma unidade de saúde especializada para atendimento. A prefeitura pretende destinar um local do hospital municipal para futuras demandas, mas sabe que, se houver algum paciente grave, precisará contar com apoio estadual.

“Não temos UTI e nenhum respirador no município”, disse a secretária de Saúde da cidade, Elisabeth Xavier. Até o momento, foram descartados nove casos suspeitos em João Dias e qualquer pessoa com sintomas de gripe passa a ser monitorada pelos agentes de saúde. O município é o único dos 167 do Rio Grande do Norte que não tem casos confirmados. 

Com a interiorização da covid-19, oferecer vagas para pacientes que vêm de pequenas cidades sem equipamentos para atender a casos graves tornou-se uma nova dificuldade para as capitais e metrópoles dos estados. Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, estado que concentra a maioria das cidades que ainda não registraram casos de covid-19, por exemplo, já tem ocupados 87,7% dos leitos de UTI da rede pública destinados à doença.

“À medida que a pandemia se interioriza, os centros de referência começam a receber muitos pacientes dos pequenos municípios. A depender do tamanho do estado, os pacientes demoram muitas horas para chegar ao destino, não só pela distância, mas aguardando a disponibilidade de ambulância com os recursos para o transporte e o médico. Assim, quando conseguem chegar à unidade de referência, já demandam leitos de UTI”, explica o especialista em saúde coletiva e pesquisador da Fiocruz Carlos Machado. 

Outro gargalo revela-se na própria natureza das cidades menores. “Os municípios pequenos vivem de pequenos comércios, em que as pessoas têm que estar presentes. Apesar de não ser tão intensa como nas cidades grandes, a circulação é contínua. Como manter o distanciamento social alterando essa cultura, que é fundamental nas condições de vida desses municípios? Por isso, vários indicadores apontam que os impactos são maiores no interior”, completa Machado.

Exceção em meio ao contágio

A Secretaria de Saúde de São Paulo informa que apenas seis dos 645 municípios do estado, epicentro da covid-19 no Brasil, resistem à chegada da doença. No balanço do Ministério da Saúde, apenas uma está livre da pandemia. A divergência se dá porque, enquanto os municípios excluem os casos que foram registrados no local, mas que se referem a moradores de cidades vizinhas, o ministério não faz esse filtro.

Apesar de, assim como Santana, terem como vantagem uma baixa densidade demográfica e menor movimentação populacional, as cidades paulistas estão ao lado de locais com alto descontrole da doença e taxas de transmissão agudas.

Próximo à divisa com o Paraná, Cruzália, com apenas 2.274 habitantes, registrou 28 casos suspeitos, mas nenhum deles teve o diagnóstico positivo para o vírus. A médica Paula Iara de Souza, que faz o monitoramento, explica que, mesmo sem casos confirmados, o trabalho de vigilância é feito com todo o cuidado. “Partimos do pressuposto de que pode haver contaminação a qualquer momento. Não liberamos as atividades, não fazemos festas e mantemos o isolamento e o rastreio da população.”

“Tomamos as medidas de forma precoce, quando só havia casos no Rio de Janeiro e em São Paulo, no final de março. Como é uma cidade pequena, conseguíamos saber quem vinha de fora para fazer o acompanhamento”, conta a médica. 

Segundo Paula, no início, a indicação a essas pessoas era o isolamento preventivo. “Não implantamos barreiras físicas. Não faz muito sentido, porque Cruzália é uma cidade por onde passa muita gente, e tem muitas saídas. Às vezes, a gente ia parar alguém que nem ficaria na cidade e acabaria contaminando os profissionais de saúde”, disse. Atualmente, explica, o isolamento preventivo faz sentido porque toda a região tem transmissão comunitária.

Outra medida tomada foi o fechamento das atividades não essenciais por algum tempo. “Inicialmente fechamos tudo por um período, até para estabelecer nossa resposta à pandemia. Até hoje, o consumo no local está proibido em bares e restaurantes”, ressalta Paula. A máscara também é item essencial e ainda há um disque denúncia contra aglomerações. 

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