Correio Braziliense
postado em 04/08/2020 04:14
Apesar do discurso liberal das primeiras horas do governo Bolsonaro, está ficando cada vez mais claro que só a ação de um Estado forte pode salvar as nações da ruína econômica e humana que acompanha a pandemia e, em seguida, recuperar o crescimento. Governos de todas as tendências estão deixando de lado os dogmas da teoria econômica tradicional e explorando todas as possibilidades do poder soberano do Estado, numa extensão jamais vista até hoje.No entanto, para que o Estado possa de fato exercer este papel estratégico, são necessárias pelo menos duas condições. Primeiro, é preciso que se forme um mínimo de consenso entre as elites ou lideranças políticas, empresariais e acadêmicas a respeito desse caminho. O uso de deficits públicos e da expansão monetária por parte do Banco Central contraria o pensamento convencional e encontra forte oposição, embora tenha se tornado o padrão na Europa, nos Estados Unidos e na China, entre outros. A opinião ainda dominante entre nós é que, passado o pico da pandemia, é hora de voltar às medidas de ajuste fiscal. Se assim fizermos, estaremos voluntariamente escolhendo o caminho da estagnação permanente.
Além desse consenso, é necessário um clima político de cooperação e confiança entre governo, Congresso e tribunais superiores, para que o Executivo receba os poderes econômicos extraordinários para executar um programa forte de investimentos em infraestrutura, e um programa de grande escala de transferência de renda para os desempregados e os chamados invisíveis, num período de transição de dois a três anos. Consolidado o processo de recuperação e de controle dos danos sociais, podemos e devemos iniciar uma trajetória de eliminação paulatina dos excessos fiscais temporários.
Realisticamente, será que temos como alcançar essas duas condições? Não será fácil, mas na história dos homens muitas vezes o impossível foi ultrapassado. A iniciativa de formação de um novo pensamento majoritário sobre o papel, ainda que emergencial, do Estado, deve partir do governo e de sua equipe econômica. Acontece que a nossa equipe econômica foi predominantemente recrutada no mercado financeiro e seu traço comum é a fidelidade ao liberalismo e a desconfiança nas políticas públicas ativas. Em sua cultura, o Estado não pode ser uma solução, porque ele é o verdadeiro problema.
Dogmas e princípios dão conforto ao espírito, mas não resolvem os problemas reais. Nosso presidente foi eleito por motivos muito variados e por circunstâncias peculiares, e não está preso a nenhum compromisso com políticas liberais na economia. Independentemente de seus eleitores, é dever de qualquer presidente zelar pela prosperidade de seu país e pela defesa da estabilidade social. Cabe ainda a ele determinar as linhas do governo e não se sujeitar à linha dos seus subordinados. Não é hora de resistências ideológicas, porque o que está em jogo é o próprio destino do país. Por isso, ou mudam-se as ideias ou deve-se mudar os homens.
Quanto à cooperação entre os poderes e os diversos atores políticos, temos de reconhecer que o governo não tem ajudado nesse propósito. É um governo irregular, liderado por um homem sem a necessária experiência intelectual ou política para comandar um país complexo numa hora tão extrema. No entanto, este é o governo que temos. Para o bem comum, ele deve ser preservado por todos os que colocam as instituições acima dos homens.
Até agora, o presidente tem apostado na divisão dos brasileiros e no incentivo aos extremos, o que o tornou minoritário na sociedade. No entanto, a questão mais crítica é seu relacionamento com o sistema político. A maioria dos políticos, no Congresso e nos partidos, tem grande desconfiança do presidente e receia apoiar medidas extraordinárias que tornariam seu governo um grande sucesso, apesar dele mesmo. O espectro da reeleição paira sobre tudo e o governo nada faz para exorcizá-lo. Com isso, caminhamos para a inércia ou para o impasse. Só o próprio presidente poderá desfazer este temor e esta desconfiança. Terá ele esta grandeza?
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