Canta Brasília

Cássia Eller e Zélia Duncan podiam ser encontradas nas noites brasilienses

No início da carreira, as cantoras tocavam nos bares da cidade

postado em 21/04/2013 07:00 / atualizado em 16/09/2020 11:56

Cantora Rosa Passos

O voo de Rosa Passos rumo à cena internacional partiu diretamente de Brasília, sem escalas ou conexões por outras capitais. Foi depois de se destacar nos Estados Unidos e na Europa que o nome da baiana passou a reverberar com força no Brasil. ;Eu aconteci de fora para dentro;, comenta ela, moradora da cidade desde 1974. Cássia Eller chegou à nova capital no fim da adolescência; Zélia Duncan, ainda criança. Expostas à ;promiscuidade; musical que assolava o Planalto Central (o termo, usado no ;melhor sentido possível;, é de Zélia), as duas se alicerçaram para conquistar outras paisagens. ;Eu certamente seria outro tipo de artista se não tivesse vivido em Brasília;, avalia Duncan. Outro detalhe, talvez menos sabido, também salta aos ouvidos: em início de carreira, elas podiam ser facilmente encontradas nos bares brasilienses.

;Fazer a noite foi uma coisa maravilhosa. Descobri meu lado intérprete e a liberdade para escolher o repertório;, conta Rosa, hoje com 61 anos. A baiana de Salvador chegou a Brasília com pouco mais de 20 anos e recém-casada. Não saiu mais. Após um disco autoral lançado em 1980, deu vazão à porção cantora na primeira metade daquela década, a princípio no bar Amigos, na 105 Norte; e, depois, no Degraus, na comercial da 302 da mesma Asa. ;Eu fazia meu trabalho e voltava para casa, cantava na noite por opção. Aprendi a ver o que as pessoas gostavam de ouvir.;


Cássia Éller no Bom Demais: presença arrebatadora


No primeiro endereço, Rosa dividia a atenção do público com o guitarrista Lula Galvão. A intensa relação sonora iniciada lá pavimentou uma sólida amizade, que os persegue a vida inteira. Ainda hoje, Galvão grava e se apresenta ao lado dela. ;Somos casados musicalmente;, sintetiza Rosa. ;Naquela época, havia uma efervescência de música de boa qualidade, então o público era bastante curioso;, recorda-se o guitarrista.

Do Amigos, a dupla foi para o Degraus. Como o local pedia um som mais dançante, uma trupe de instrumentistas foi arregimentada para a empreitada: Jorge Helder, Alfredo Paixão e Herivelto Silva. ;Fazíamos um repertório mais adequado para esse tipo de lugar, mas sem deixar cair o nível;, detalha Galvão. Os ;meninos;, como Rosa se refere aos músicos, também mantiveram suas carreiras atreladas à dela ao longo dos anos. ;Quando comecei a deslanchar profissionalmente, eles seguiram comigo. Nossa relação é muito forte;, enfatiza.


Zélia Duncan participa do projeto Concerto Cabeças


Rosa parou de trabalhar na noite por volta de 1986 e, pouco depois, foi convidada a fazer um show no Japão. Na volta, gravou no Rio de Janeiro o segundo disco, Curare ; que saiu em 1991 e é tido como o primeiro CD de um artista brasileiro. ;Me profissionalizei no exterior. O currículo vistoso inclui apresentação no Carnegie Hall, em Nova York; parcerias com Yo-Yo Ma e Ron Carter; título de doutora honoris causa pela Universidade de Berkeley, na Califórnia; e citações como referência para Diana Krall, Melody Gardot, Gretchen Parlato e Karen Elson.

Casa de todos

O bar Bom Demais existiu entre os anos de 1984 e 1990, na 706 Norte. É quase impossível citá-lo sem se lembrar de Cássia Eller. A carioca, que passou por várias cidades até mudar-se para Brasília, aos 18 anos, tornou-se a rainha do lugar a partir de 1986, quando pisou lá pela primeira vez. Saiu para o reconhecimento nacional. ;Ela chegou com uma banda que não era muito boa e eu pedi que mudasse;, lembra a dona do bar, Cristina Roberto. Assim, Eller passou a tocar com a Banda dos Bons, um trio jazzístico formado por Zequinha Galvão, Nelson Faria e Toni Botelho. ;Cássia tinha um timbre especial e era carismática;, observa Cristina.

Cássia tocava às quintas e chegava a reunir 500 pessoas nos arredores do bar. ;Lembro-me de policiais chegarem lá para fechar o bar, por causa de reclamações, e acabarem ficando para vê-la;, relembra Cristina.

Rosa Passos também fez algumas temporadas no Bom Demais, onde, segundo Cristina, reunia uma plateia ;mais comportada;. No local, Rosa pôde ver Cássia ; morta aos 39 anos, em 2001 ; algumas vezes. ;Ela era minha fã, e eu dela. Não vai acontecer mais ninguém como Cássia, singular e visceral no que fazia;, sentencia.

Acompanhada da mãe


;A Rosinha (Passos) era nosso ídolo, a gente ia sempre vê-la cantar;, conta a niteroiense Zélia Cristina, depois Duncan, que aterrissou na cidade-avião em 1971. Amiga de Cássia, também andou pelo Bom Demais e por diversos outros botecos, restaurantes e até pizzarias. Aos 16 anos, já estava metida com a boemia da cidade, no início da década de 1980. Enquanto Brasília entrava em ebulição ao som do rock e do punk, Zélia mergulhava na dita música popular brasileira, ao lado de nomes essenciais da cena local, como Paulo André Tavares, Renato Vasconcellos, Toni Botelho e Nelson Faria.

;Foi uma época fundamental, de começar a trabalhar e sentir-se profissional;, relembra a quase cinquentona artista. Duncan passou um ano no Rio (depois mudou-se definitivamente para lá, em 1987), e sentia-se mais preparada que as colegas de ofício para encarar a noite. ;Cantei em lugares nobres de Brasília, com músicos que eram ;os caras;, coisa que eu teria demorado muito a fazer no Rio;, avalia. Assim como Rosa, Zelia fez história no Amigos, um local, diz ela, para ;gente que gostava de música;.

O guitarrista Nelson Faria era amigo de Zelia do Colégio Marista, onde passavam os recreios de violão embaixo do braço. Os dois começaram a se apresentar juntos no Barzinho, no Lago Sul. ;Na primeira noite, ficamos até o amanhecer, esperando que a última mesa pagasse a conta para que o dono pudesse contabilizar os couverts e pagar nosso cachê;, lembra Nelson. Zélia, então menor de idade, tinha, por vezes, a companhia da mãe. ;Enquanto tivesse público, a gente tocava;, diz ela.

Baiana-brasiliense

Hoje, Brasília é o ponto de descanso de Rosa Passos. Fora dos palcos, em sua casa no Setor de Mansões Dom Bosco, a dona de casa Rosa cuida com alegria de seus gatos e cachorros (são nove ;bichinhos;, como ela os chama, no total) e exibe orgulhosa, nas redes socais, fotos de netos, amigos e pratos tipicamente baianos preparados por ela. Rosa é mãe de três filhos e é casada com o economista Paulo Sérgio Passos. ;Eu gosto muito daqui, me tornei uma baiana-brasiliense. Foi a ponte para minha carreira internacional e só me deu prazer. Criei meus filhos com tranquilidade em Brasília;, resume.

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