Cidades

Niemeyer defende a criação de novas cidades

Arquiteto acredita que a densidade demográfica deve ser fixada.

postado em 20/04/2008 20:00

Rio de Janeiro ; O arquiteto Oscar Niemeyer, 100 anos, defende a multiplicação das cidades como forma de garantir a qualidade de vida dos seus moradores e evitar o crescimento descontrolado. Segundo ele, ;hoje uma cidade deve deve ter a densidade demográfica fixada;. Niemeyer alerta sobre o que prejudica Brasília: ;é estar ao lado de uma favela enorme, maior que o Plano Piloto, (uma cidade) dividida em duas;, analisa, referindo-se às cidades que ainda não têm boa estrutura. ;O que eu lamento em Brasília é o descuido com relação à qualidade de vida. Um pequeno ponto de gente pobre que cresceu e hoje você olha Brasília, uma cidade moderna, metade de gente remediada, e a outra (metade) é pobreza;. No aniversário da cidade que ajudou a construir, o arquiteto falou sobre os assuntos que gosta: trabalho e vida. Despreza títulos, honrarias e devoções. Ele reduz, assim ,seus 100 anos de história, mais de 70 anos de carreira, mais de 600 projetos arquitetônicos em todo o mundo. "Às vezes o sujeito vem de fora falar comigo de arquitetura, quer saber os prédios que estou fazendo. Eu digo que passei a vida debruçado na prancheta, mas o importante não é a arquitetura, é a vida" , ensina o maior escultor de prédios e monumentos da arquitetura mundial, os braços largos regendo as palavras, os passos lentos acorrentados à idade, o pensamento sem limites.

Brasília faz 48 anos. Ela hoje é uma filha querida, uma filha rebelde ou só mais uma de suas grandes obras?
Brasília é uma cidade que está cumprindo o seu destino. Juscelino pensava Brasília como ponto de apoio para o desenvolvimento do interior do Brasil ; e isso ele conseguiu. Brasília foi uma aventura, aventura difícil. E acho que Brasília começou na Pampulha. Juscelino tinha o mesmo problema para resolver e Brasília, como a Pampulha, foi feita às pressas. O mesmo problema de dinheiro, de preocupação com prazos. E a Pampulha foi um sucesso, um sucesso que contribuiu para Juscelino ter o ânimo de fazer Brasília. Me lembro a primeira vez que fui a Brasília, com Juscelino no gabinete dele, com os ministros. Me lembro que pareceu tão longe... Sem acessos, sem meios de comunicação, sem nada. Engraçado que eu estava ao lado do general (Henrique) Lott (ministro da Guerra). Ele disse para mim: ;Então, Niemeyer, o sr. quando fizer os prédios do Exército, vão ser prédios clássicos, né?;. E eu respondi: ;Se o sr. fizer uma guerra, vai ser antiga ou moderna?;. Ele riu muito, era muito simpático.

O Planalto Central espantou o senhor?
Eu fiquei surpreso com o lugar, achando difícil, aquele fim de mundo. Brasília surgiu do entusiasmo de JK. E foi feita às pressas, com os inconvenientes que a pressa provoca. Mas foi feita. Juscelino tinha o apoio do Israel Pinheiro (que presidiu a Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil e depois foi o primeiro prefeito da nova capital), foi fantástico, era um sujeito correto, muito honesto, dinâmico. Seis horas da manhã e ele já estava correndo a obra. E tudo foi feito com muito empenho, naquela poeirada danada. Me lembro que trabalhávamos num barracão, e que o teto era de zinco. No inverno era muito frio e nós usávamos uns capotes da marinheiro. Lembro da barulhada do granizo batendo no zinco. Mas foi no meio daquela poeirada que foi feita Brasília. A gente sentia que muitas coisas estavam mudando, o barulho das máquinas correndo, cavando a terra, aquele sertão abandonado que virou Brasília.

Foi um grande desafio para o arquiteto Niemeyer?
Brasília foi feita com o apoio de JK. Mas para nós arquitetos foi feita com muitos problemas. Do Congresso Nacional, nós tínhamos a planta do terreno, os dados para a construção e a idéia de que seriam 80 deputados, mas que podia-se prever no futuro o dobro, 160. E vieram 500. Um prédio feito para 160 deputados não pode funcionar bem com 500. O Palácio do Planalto, por exemplo, eram (previstos) 200 funcionários e hoje tem 700. De modo que a pressa criou muitos problemas, daí a correria. Me lembro do entusiasmo de JK. Às vezes, de noite, a gente fazia uma reunião lá no Palácio, chamava gente, chamava o Dilermando Reis (compositor e violonista que foi professor de violão de JK) para tocar violão. Uma vez, saímos do Palácio mais de meia-noite, ele (JK) parou assim, me pegou pelo braço, olhando os prédios que surgiam, e disse: ;Oscar, que beleza;. Brasília foi isso, um gesto de boa vontade, de interesse, e que criou um clima de otimismo no Brasil, a gente achando que também podia fazer as coisas. Teve os inconvenientes inevitáveis da pressa. Mas Brasília está lá. É uma cidade que o (urbanista) Lucio (Costa) fez com muito empenho. Ele compreendeu que Brasília tinha que ser diferente, tinha que ter qualquer coisa monumental, caracterizado pelo gesto de construir uma capital. Fez a Esplanada, o Eixo Monumental. Mas Brasília foi ficando um pouco como todas as cidades, com erros e entusiasmos. Às vezes, as áreas que deviam continuar vazias, eram ocupadas por prédios, o que prejudica muito. Uma capital se caracteriza pelos espaços, pelas praças, pelos grandes espaços livres. Em Brasília, a preocupação é: se tem um espaço livre, faz outro prédio. Então esse exagero se efetuou com a chegada desse pessoal todo para Brasília, a atração do poder. O Juscelino pensava em levar só o gabinete, a Presidência e os prédios indispensáveis. Era uma coisa menor, mais apurada. E Brasília cresceu...

Como o senhor vê Brasília hoje?
O que eu lamento em Brasília é o descuido com relação à qualidade de vida. Um pequeno ponto de gente pobre que cresceu e hoje você olha Brasília, uma cidade moderna, metade de gente remediada, e a outra (metade) é pobreza. E o pior é que forem eles (candangos) que construíram Brasília. Eu me lembro naquele tempo, a gente encontrava nas construções caminhões que vinham de toda parte, gente que vinha trabalhar em Brasília, a terra da promissão que esperavam. Eles é que construíram Brasília e estão lá jogados, largados. O único governador que se interessou foi o José Aparecido (de Oliveira), que fez a Casa do Cantador. Mas isso acontece, a cidade se degrada um pouco com o tempo. E Brasília sofreu essa ânsia de construir coisas, de não ter espaço livre, quererem botar logo edifícios. De modo que a gente olha o passado com muita amizade, tudo feito com muita solidariedade, contra o tempo, contra tudo. E a cidade, bem ou mal, está lá. É a capital do Brasil. E representa um momento de grande entusiasmo, que Juscelino tão bem soube organizar.

Muitas saudades daqueles tempos?
A gente lembra dos companheiros antigos com muito afeto, com muita saudade, eles que construíram tudo. Eu lembro do Israel chamando a gente para o trabalho, a gente metido naquela poeirada, a poeira vermelha que tinha Brasília, tinha que tomar um banho de manhã e outro de tarde. Mas está lá, a vida está lá. Juscelino teve a sorte de encontrar Israel Pinheiro, que foi o grande auxiliar dele, sem Israel não se fazia nada. E a cidade pronta, funcionando, com os inconvenientes de qualquer cidade que caminha no tempo. Hoje uma cidade deve ter a densidade demográfica fixada. Quando chegar naquele ponto, precisa parar e fazer outra. As cidades devem ser multiplicadas, não crescer sem controle como acontece.
É isso o que penso da vida, lembrando sempre os amigos. Não foi uma coisa individual, todo mundo trabalhou, todo mundo produziu, todo mundo deu um pouco do esforço dentro do que JK solicitava.

Alegra-o ver a cidade crescer?
Lógico, mas vejo isso com preocupação. Tem gente demais, construíram demais, espaços vazios foram ocupados. Mas isso acontece em qualquer cidade.

Quando o senhor participava da construção de Brasília, imaginava a cidade habitada, as pessoas vivendo, trabalhando...?
(Brasília) Ainda é uma cidade para 500 mil habitantes. O que hoje prejudica Brasília é estar ao lado de uma favela enorme, maior que o Plano Piloto, (uma cidade) dividida em duas. O tempo correu, a coisa cresceu. E o pior é que a favela foi deixada de lado. Só o Zé Aparecido é que construiu a Casa do Cantador lá. Agora o Arruda está fazendo o gabinete dele lá (em Taguatinga). O tempo está mudando. A luta é política. Esse negócio de arquitetura é secundário. Outro dia me perguntaram: qual é a palavra que o sr. gosta mais? Eu disse: solidariedade. (O importante) É o sujeito ser modesto, saber que o ser humano não tem importância nenhuma, nem muita finalidade.

As cidades-satélites mereceriam ter obras de Niemeyer?
Acho que devia ser uma cidade só para todos. Criaram uma coisa inferior para ter apoio, sei lá, deixaram crescer. Agora, o Arruda está preocupado, botou o gabinete dele lá. Essas cidades cresceram sozinhas, sem apoio, e foram eles que fizeram a capital, que construíram os prédios.

Os 50 anos de Brasília estão chegando. Algum presente?
A cidade chega um ponto tem que parar de crescer, senão se degrada. As cidades ocupam cada vez mais espaço, e é isso que cria problemas de tráfico...

O senhor poderia falar sobre alguns dos monumentos que projetou, como, por exemplo, o Palácio da Alvorada?
Foi engraçado. O tempo, que era curto demais, devia nos obrigar a fazer uma arquitetura mais simples, mais rápida de executar. E foi o contrário. A gente queria fazer uma arquitetura diferente, que criasse a surpresa, que criasse o interesse maior. Eu podia ter feito as colunas do Alvorada simples, era mais fácil, mas não, quis criar uma forma diferente. Quer dizer, a gente lutava contra o tempo, e ao mesmo tempo o desenho da gente acentuava o problema. A gente não fazia uma coisa simples. A gente queria fazer um prédio que o sujeito olhasse e tivesse um certo espanto, uma certa surpresa, porque ele é diferente. Essa é a arquitetura que a gente faz até hoje.

Sofreu muitas resistências?
Houve um período da arquitetura, do Bauhaus (escola de design e arquitetura de vanguarda que funcionou no início do século passado na Alemanha), que entendia a arquitetura como uma máquina de habitar. Não é nada disso. A gente quer fazer uma arquitetura utilizando o concreto, que é generoso, mas que espante. Lembro quando fiz o Museu de Brasília, era uma cúpula de 40 metros. Depois eu vi a planta no conjunto, percebi que o museu tinha que ter mais força. Telefonei pro calculista que muito nos ajudou, o (José Carlos) Sussekind, e disse a ele, ;olha, não é 40 metros não, é 80;. O prédio do Museu de Brasília mostra justamente o empenho em fazer algo diferente, uma cúpula de 80 metros. É engraçado, estava pronto o prédio, mas eu queria que ele criasse mais surpresa. Então, pensei em criar uma espécie de corredor que saisse de um andar fora do prédio e entrasse no outro andar. Não tinha nada a ver com o problema do museu, mas quem olha fica espantado. E quem vai no museu quer dar aquela voltinha em cima da cidade. Arquitetura é isso, não é apenas fazer o prédio, é fazer uma coisa que espante, que o mais pobre, o trabalhador que não entende nada de arquitetura, tenha prazer em pelo menos olhar. Uma coisa diferente.

Como surgiu a idéia do côncavo e do convexo das cúpulas do Congresso Nacional?
Me ocorreu... E foi feito com tanto carinho. Essas coisas, o pessoal que não entende de concreto e de arquitetura, não percebe. Um dia o (calculista) Joaquim Cardoso calculou as cúpulas, telefonou para mim e disse: ;Oscar, encontrei a tangente que vai mostrar que a cúpula da Câmara está apenas pousada na laje;. Brasília foi trabalho, dia e noite, e apesar do trabalho a gente procurando fazer uma coisa um pouco diferente. Era o sonho de JK, um período que gerou otimismo no povo brasileiro. O resto é a gente pensar assim, que arquitetura não é só fazer um prédio, a gente quer algo que seja útil, que todos possam usufruir da arquitetura. Às vezes o sujeito vem de fora falar comigo de arquitetura, quer saber os prédios que estou fazendo, eu digo que passei a vida debruçado na prancheta, mas o importante não é a arquitetura, é a vida. Que a gente seja mais útil, que tenha prazer em ajudar o outro. Que o homem olhe o outro não procurando defeitos, mas procurando sentir, sabendo que ele tem qualidades também, todo mundo tem uma qualidade. O (Vladimir) Lenin (revolucionário russo) já dizia que com 10% de qualidade ele podia conversar com qualquer pessoa. De modo que mais do que arquitetura nos interessa é a luta política, é mudar o mundo, fazer um mundo igual para todos. É lutar contra quem interfere na América Latina e ameaça a gente, como o (George W.) Bush (presidente dos Estados Unidos), espalhando a miséria pelo mundo. Eu não posso pensar na arquitetura sem pensar na vida, na luta política. O (presidente) Lula está com a gente, ele é um patriota, é um operário, está ao lado do povo. E como ele quer mudar o capitalismo, que é uma merda, ele está com a gente e espanta os que tentam impedi-lo.

Agora que concluiu a Esplanada dos Ministérios, com o Museu e a Biblioteca, e vai fazer o Mirante no Colorado, o que falta em Brasília?
O (governador José Roberto) Arruda está pensando maior. Ele quer dar a Brasília elementos mais monumentais. A Praça do Povo, por exemplo, é um projeto importante para Brasília. A torre (Mirante do Colorado) que ele está fazendo é um exemplo da técnica mais apurada, uma torre de 120 metros de altura, com um restaurante e uma sala de exposições, num balanço de 50 metros. Você percebe que Brasília está atuando agora afim de fazer a coisa mais apurada, mais corajosa, como deve ser uma capital.

O senhor morou por três anos na nova capital, na construção da cidade...
Eu não fiz nada demais, só fiquei lá com meus colegas, trabalhando. Eles realizaram tanto quanto eu, com maior entusiasmo. Foi um momento importante na vida da gente, poder participar de uma obra tão importante.

O senhor chegou a pensar em morar em Brasília?
Não. Eu sou do Rio de Janeiro.

Le Corbusier (arquiteto franco-suíço) disse que o senhor tinha as montanhas do Rio nos olhos...
Eu sou do Rio, nasci aqui, é uma cidade fantástica. O Brasil é todo cheio de contrastes, de belezas, é um grande país. E está no caminho certo, dentro dos povos da América Latina, que está ameaçada, que se unem, se organizam contra o império do Bush, que tudo ameaça.

Os grandes centros urbanos hoje vivem uma espécie de apartheid social...
Mas está melhorando, o governo está interessado no povo, está havendo trabalho, está havendo entusiasmo. Estamos vivendo um momento muito bom, especialmente essa luta contra a reação intransigente, ignorante, de quem olha o mais pobre com desprezo. Isso acabou... vai acabar. A miséria é maioria e um dia ela vai prevalecer.

O senhor tem aqui todas as terças, há cinco anos, debates sobre filosofia e astronomia...
A gente fica espantado. O ser humano é tão sem importância.

Ainda ainda está sendo muito incomodado com essas homenagens aos seus 100 anos?
Ah, isso é uma merda. Queria ter 20 anos. O sujeito veio aqui: ;sr. Niemeyer, o que o senhor pensa da vida?; Eu falei com ele: ;uma mulher do lado e seja o que Deus quiser;. É isso mesmo. Mulher precisa. O Darcy (Ribeiro) dizia: mulher é fundamental. O resto é... a vida é um minuto. O (ex-técnico e jornalista) João Saldanha vinha muito aqui e dizia sempre: ;A gente não consegue fazer um programa. O destino muda tudo. Leva a gente para um lado, para o outro;. Então, tem que ser modesto, tem que se informar. Nós lutamos agora contra o homem especialista, o sujeito que só sabe arquitetura, só sabe engenharia, e quer ser o vencedor. Tem que conhecer o problema das pessoas, saber que a vida é difícil, que há miséria, não ficar dentro de si mesmo. Estamos fazendo uma escola de Arquitetura em Niterói, voltada para o conhecimento. São dois meses apenas. O sujeito entra, pensando que é importante, que é um grande médico, que é grande coisa, só sabe falar sobre isso, e vai sentir que o mundo é diferente, que tem gente pobre, que tem que ser pelo menos um mundo mais justo. Saber que existem os planetas. E nós estamos aí, pequenininhos, olhando para isso, pensando que somos importantes. Somos uns bichinhos. Então temos pelo menos que ser solidários. Sem pensar que é importante. É uma merda. Ninguém tem importância, importante é a vida.

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