postado em 06/07/2008 08:47
A função de uma emenda é muito clara no processo legislativo: é a oportunidade para o parlamentar propor mudanças a um projeto de lei para melhorá-lo, corrigi-lo ou completá-lo. Mas não foi isso que ocorreu na proposta de regularizar os terrenos públicos ocupados por igrejas no Distrito Federal. Nesse caso, o que deveria ser instrumento para aperfeiçoar o texto enviado pelo governo, acabou por deformar a tentativa de acabar com uma ilegalidade que se arrasta há mais de 20 anos. Quase 600 emendas submarinas ; apelido que recebem as que não passam pelo crivo de todos os deputados ; foram adicionadas ao projeto que tramitava na Câmara Legislativa. Os distritais incluíram lotes vazios, terrenos ocupados por estabelecimentos comerciais, associações de ginástica e até mesmo um apartamento no Sudoeste na lista que deveria conter apenas imóveis edificados por templos religiosos ou entidades assistenciais.
Por conta dessas distorções, a votação em segundo turno acabou anulada e a proposta voltou ao Executivo, onde está sendo revista. O Correio teve acesso a todas as emendas adicionadas ao Projeto de Lei Complementar nº 65/2008, enviado para apreciação dos deputados em fevereiro deste ano. Elas somam 1.272 páginas ; o PLC teve de ser dividido em cinco volumes por causa da quantidade de mudanças. Das 592 emendas propostas no primeiro e no segundo turno, 542 (ou 91%) adicionam endereços à listagem original do governo (as demais fazem alterações no texto do projeto e até suprimem terrenos que aparecem em duplicidade).
Durante três dias, a reportagem visitou 48 endereços suspeitos contidos nas emendas em Ceilândia, Taguatinga, Riacho Fundo, Recanto das Emas, Candangolândia, Sudoeste, Estrutural, Sobradinho, Lago Norte, Varjão e Gama. E 75% eram lotes vazios, no meio de áreas comerciais ou residenciais e vizinhos a igrejas, que seriam usados para ampliar a área dos templos. Apenas 12 terrenos eram de fato ocupados por templos ou entidades assistenciais.
Vários endereços
A maioria das emendas adiciona um endereço de cada vez. Algumas delas até especificam o nome da entidade que receberia o lote, mas o texto de outras simplesmente diz que ;a emenda visa à adequação urbanística da área que é utilizada pela instituição há diversos anos;, sem trazer nenhum detalhe sobre quem seria beneficiado. Há casos de uma única emenda que traz mais de um endereço. A emenda nº4, apresentada pelo deputado Doutor Charles (PTB) no segundo turno, por exemplo, inclui 85 entidades no projeto, sem especificar o nome delas nem há quanto tempo elas estão nos locais. O distrital foi procurado pela reportagem, mas está em Nova York, em um congresso da Organização das Nações Unidas (ONU), e só retorna ao Brasil no próximo dia 15.
Um dos terrenos, na EQNP 24/28, em Ceilândia, por exemplo, está em nome da Associação dos Deficientes Físicos de Brasília. Mas, segundo os moradores das redondezas, há mais de cinco anos a entidade não funciona lá. Nos fundos, fica a Paróquia Cristo Rei, e funcionários da igreja confirmaram que há muito tempo a instituição tenta incorporar o terreno à área da paróquia. Outra emenda inclui os lotes 10, 11 e 12 do conjunto K da QNO 16, todos vagos. Eles ficam em local privilegiado, em uma avenida comercial, e são vizinhos à Assembléia de Deus Ministério Vivendo em Cristo, uma igreja pequena que tem apenas um cômodo construído. Ambas são assinadas em conjunto por vários deputados (Bispo Renato Andrade, Brunelli, Rogério Ulysses, Wilson Lima e Luzia de Paula).
Na QNP 5/9, também em Ceilândia, os deputados quiseram incluir quatro lotes vagos na quadra, que é comercial. Ao saber da intenção dos distritais de ceder a área para igrejas, o comerciante Valdi Pereira Gomes, 52 anos, protestou. Lembrou que, para igrejas, já existem áreas especiais e mistas. E que o correto é que locais destinados a comércio sejam ocupados exclusivamente por essa atividade. ;Em Brasília, essa história de igreja virou uma bagunça. Em qualquer lugar eles abrem uma porta e começam a reunir os fiéis. Isso está errado;, comentou.
Nos setores Leste e Oeste do Gama, há um beco de 270 metros quadrados a cada cinco lotes residenciais. Eles servem para a população cortar caminho entre as quadras. Mas o deputado Wilson Lima (PR) quis destinar 44 lotes do tipo para a construção de templos (todos eles são listados em uma única emenda). Alguns dos terrenos são vizinhos a comércios. Se a proposta fosse aceita, haveria uma entidade em cada quadra do Setor Leste, da 13 à 49. No Setor Oeste, os lotes também ficariam um ao lado do outro. ;Seriam centros comunitários, onde a comunidade poderia se reunir para rezar, mas também para fazer velórios e confraternizações. O Plano Diretor Local (PDL) do Gama já aprova essa destinação para os becos;, justificou o deputado.