postado em 11/07/2008 08:40
Eles se resumem a números para as autoridades do trânsito. Viraram estatÃstica ao perderem a vida por causa de motoristas alcoolizados. Por trás de Ãndices e gráficos, há crianças, jovens e idosos que se transformaram em vÃtimas da perigosa mistura entre álcool e direção. Para as famÃlias, figuram como protagonistas de histórias de dor e sofrimento. Os relatos de saudade e tristeza fizeram com que os parentes perdessem o rumo em decorrência da irresponsabilidade ao volante. E representaram o fim da convivência com mães, pais, filhos, avós, tios, primos e amigos.
Em época de tolerância zero para quem dirige, o Correio ouviu familiares que se envolveram na tragédia do trânsito brasiliense. Não como vÃtimas diretas. Mas por serem obrigados a organizar enterros, testemunhar em delegacias e acompanhar julgamentos. ;A gente sabe que tem muito sofrimento pela frente ainda, mas vamos até o fim. Queremos justiça e lutaremos por ela;, conta Adriana Monteiro da Silva, 25 anos. Ela perdeu a irmã de 17 anos em um dos acidentes mais graves registrados no DF nos últimos anos ; o motorista acusado como responsável admitiu ter bebido.
A seguir, seis famÃlias de BrasÃlia contam como perderam pessoas queridas porque o álcool se misturou à imprudência ao volante. Relembram histórias de atropelamentos, capotagens e colisões ocorridas entre 2004 e 2008 e que poderiam ser evitadas caso o motorista estivesse sóbrio. Os depoimentos se confundem com emoção, revolta e frustração. Nem todos os casos terminaram com a punição do acusado pela tragédia. As vÃtimas, no entanto, não retornam à vida. E, aos familiares, restaram a lembrança e a luta pela readaptação.
SAUDADE
Jovem perdeu três irmãos
Eles trocaram o interior do Piauà pelo Distrito Federal. Vieram para trabalhar, estudar e vencer na capital do paÃs. O sonho, aos poucos, se tornou realidade, mas um acidente acabou com a história recém-construÃda em BrasÃlia. Os três irmãos ; os gêmeos Evanio e Evanessa Rodrigues da Silva, 18, e Gleicia, 16 ; morreram na tarde de 22 de junho, na BR-020. O Palio, conduzido pelo amigo Pedro Andriak Soares da Silva, 24, capotou. As vÃtimas foram arremessadas do veÃculo.
A tragédia ficou marcada pela imprudência e irresponsabilidade. Nenhum dos ocupantes do banco traseiro usava cinto de segurança ; nem mesmo uma das sobreviventes, Klésia, irmã das vÃtimas. O condutor dirigia embriagado e em alta velocidade. Atrapalhou-se ao tentar uma ultrapassagem. Pedro está preso e responderá a processo por homicÃdio doloso (com intenção de matar).
A saudade ficou para a irmã mais velha das vÃtimas, Silvânia Rodrigues da Silva, 26. O papel dela era o mesmo dos pais, que moram em Santa Filomena (PI). Foi a primeira a chegar ao DF e abrir caminho para os mais novos. ;Por enquanto, não há planos. É tudo recente demais. Sinto muita falta de todos;, lamenta a moça.
Apesar da dor e da saudade, a jovem quer conversar com Pedro. Pretende aliviar um pouco o sofrimento do amigo. Acredita que ele não teve intenção de matar. Mesmo assim, reclama da irresponsabilidade. Não só dele. Mas de todos. ;Eles deveriam ter dito para (o Pedro) não beber. Talvez, se a proibição de beber e dirigir tivesse vindo antes, nada teria acontecido;, comenta.
À ESPERA DA JUSTIÇA
Lei para poupar vidas
O vazio que Eriberto dos Santos Vila Nova deixou na casa do Riacho Fundo II é para sempre. ;Essa grade no portão foi ele quem colocou;, conta o pai Josenildo. As irmãs não esquecem o sorriso do jovem, hoje limitado à fotografia na sala. ;Sinto um bocado de saudade, sabe?;, confessa Keila, 24 anos. ;Não é fácil perder um filho dessa forma;, diz a mãe, Maria Vilani, antes de embargar a voz.
Ninguém da famÃlia se recuperou desde a morte de Eriberto, atropelado aos 23 anos, em 18 de fevereiro de 2006. O jovem seguia de bicicleta, rumo ao Gama, pelo acostamento da DF-001. Um Gol saiu da pista e o atingiu. O motorista não prestou socorro. Foi encontrado minutos depois, a 50m do local, trocando o pneu do veÃculo. Testemunhas contaram à polÃcia que ele mal ficava em pé de tão bêbado.
Três dias depois, Cosmo Dias de Alcântara, 50, resolveu aparecer para dar explicações. Disse na delegacia que viu um vulto na beira da pista e admitiu que desconfiou ter atropelado algo. Explicou que não deu meia volta por medo. A embriaguez não pôde ser comprovada. E Cosmo acabou sendo indiciado por homicÃdio culposo (sem intenção de matar). Até hoje aguarda o julgamento em liberdade.
Enquanto isso, a famÃlia de Eriberto recorre à Nossa Senhora Aparecida para tocar a vida sem ele. A mãe queria o filho de volta. Como não pode, espera que o sofrimento sirva de exemplo. ;O álcool ajudou a destruir a vida do meu filho e a da minha famÃlia;, afirma, ao defender a lei seca. ;Tem gente que toma um copo de cerveja e já fica mal. Essa lei vai ajudar a poupar vidas;, completa.
Pinga, cerveja e morte
Gritos e imagens de caminhão atormentam a memória de William Gomes da Silva, 30 anos. ;Eu freei, tentei desviar, fiz de tudo;, diz ele, sem acreditar no acidente que, em 28 de junho deste ano, matou Ana Paula Soares, 22, a mulher com quem ele era casado havia um ano e três meses. O único filho de William, Lucas Levi, 4, e o sobrinho Luiz Henrique Soares de Souza, 2, também perderam a vida no Santana atingido de frente pelo caminhão. ;É um sofrimento perpétuo, uma dor irreparável. Perdi tudo o que eu tinha.;
William é vÃtima da irresponsabilidade de Márcio Carlos Batista Fontanelli, 38, o motorista que bebeu cerveja e pinga antes de pegar a estrada. No momento da batida, segundo o passageiro do caminhão, o condutor procurava um maço de cigarros caÃdo no veÃculo. Perdeu o controle da direção e provocou a tragédia na DF-190, entre Santo Antônio do Descoberto (GO) e Ceilândia. Está preso desde então.
A sogra de William, Nilma Soares Pinto, 42, também estava no carro. Com o rosto desfigurado, ela continua internada no Hospital de Base. Não pôde nem participar do enterro da filha Ana Paula. Passou por uma cirurgia plástica para recuperar os movimentos da face. ;Esse homem acabou com várias famÃlias. Foi muita injustiça, um golpe muito duro;, desabafa Eliene, 34, irmã de William.
A revolta com a situação faz Dulce Fonseca, 55, mãe de William, clamar por Justiça. ;Morreram três, mas eu estou viva e vou lutar para que esse caso não caia no esquecimento;, avisa. O discurso da mãe se estende em favor da lei seca. ;Não vão derrubar essa lei. Não vão conseguir colocar o lucro acima da vida;, defende Eliene.
Um amargo Dia das Mães
Aos 86 anos, Elza Perine está cansada. Vive agarrada ao sentimento de Justiça e por amor à primeira neta, morta em um acidente na Ponte Costa e Silva, no Lago Sul, em 9 de maio de 2004. O sofrimento começou em um Dia das Mães. A psicóloga Marcela Bianca de Arruda César, 34, tinha saÃdo de casa por volta das 8h para comprar flores. O Vectra conduzido pelo servidor público Walber Carvalho de Morais Júnior, 47, vinha desgovernado na direção contrária. A 115km/h, acertou de frente o carro de Marcela.
Walber saÃa de uma festa à fantasia que durou toda a madrugada. Passados mais de quatro anos desde o acidente, é quase impossÃvel provar a embriaguez. Mas é nisso que Elza acredita. ;Ele varou a noite bebendo água? Não consigo acreditar;, diz a avó. Para ela, a lei seca precisa ser rÃgida para que as pessoas a levem a sério: ;Só quem passa por esse sofrimento sabe como é horrÃvel;.
O processo contra Walber ficou parado dois anos na Justiça. Ele alegou problemas de saúde para não se apresentar diante do juiz. Dona Elza acompanha tudo de perto. Vive para isso. Explica que não pode ficar quieta diante da perda. ;No meu coração, não tem ódio. Mas esse homem não matou um cachorro. Ele matou minha neta querida. E, enquanto eu viver, vou lutar para que ele seja julgado;, desabafa.
Uma das duas filhas de Elza ; justamente a mãe de Marcela ; amanheceu morta quatro meses após o acidente. Ela conta que a filha passava noites caminhando pela casa, abraçada às fotos da jovem morta. ;Eu não sei como estou viva. Sei que Deus está comigo;, diz Elza.
Cinco mortes na rodovia
A vendedora Adriana Monteiro da Silva, 25 anos, não conseguiu dormir no inÃcio da madrugada de 27 de abril. Teve fome. Levantou da cama e fez um prato de arroz, feijão e macarrão. ;Quando finalmente consegui, tive um pesadelo. Uma pessoa que vinha em minha direção, mas estava desfigurada;, conta. Àquela altura, Adriana tinha perdido a irmã mais nova, Joseane, 17, em um acidente.
Além da adolescente, outras quatro pessoas não resistiram ao choque de dois veÃculos na DF-001, em Taguatinga. Paulo José Louzeiro, 33, Elilde Costa de Almeida, 23, e Ana Telma da Silva,24, seguiam em um Vectra. Ingrid Martins Castro, 17, em um Peugeot. Laudo preliminar revelou que o segundo carro avançou a contramão. O motorista do Peugeot, Igor de Rezende, 25, é acusado pela tragédia. Exames não confirmaram a embriaguez. Mas testemunhas e o próprio condutor disseram que ele bebeu vodca antes da batida.
;Meia dúzia de copos ou a vida;
Parado diante da casa construÃda em quatro anos, no Park Way, Luiz Cláudio Vasconcelos mantém o olhar distante. ;Isso aqui era o sonho dela. Agora, ficou tudo sem graça;, admite ele, que vez ou outra avista a mulher caminhando no jardim. Chora, enxuga as lágrimas, respira fundo e tenta se convencer da tragédia que matou Antônia Maria, 49 anos; a irmã dela, Altair Barreto de Paiva, 53; e a amiga CÃntia Cysneiros de Assis, 34. ;A rigidez da lei seca poderia tê-las salvo;, acredita o marido de Antônia. ;O que é mais importante: meia dúzia de copos de cerveja ou uma vida? Se essa lei salvar uma pessoa, já terá valido a pena.;
Ouça a entrevista com Luiz Cláudio Vasconcelos, marido de vÃtima de trânsito: