postado em 29/07/2008 11:10
- Por que você escreve?
- Vou lhe responder com outra pergunta: Por que você bebe água?
- Porque tenho sede.
- Quer dizer que você bebe água para não morrer. Pois eu também: escrevo para me manter viva.
(Entrevista da escritora Clarice Lispector para o jornalista José Castello, em 1976)
Clarice Lispector escrevia para continuar viva. Lucélia Rodrigues da Silva escrevia para não morrer. Aos 11 anos de idade, a garota que nasceu pobre na periferia de Goiânia era obrigada a anotar cada minuto de seu sacrifício diário numa caderneta velha. Ali, com caligrafia de heroína, ela registrava a hora da faxina dos banheiros, o momento de limpar a latrina do cachorro, o instante de esfregar o chão de sua senhora.
A empresária Silvia Calabresi Lima exigia detalhes. Queria saber quanto tempo Lucélia gastara lustrando os móveis e escovando os dentes. A menina sofria duas vezes: pelo serviço e por ter que descrevê-lo . Se errasse, pagava com sangue. Apanhava de cinto, de rodo, de chinelo. Comia baratas e fezes da Belinha, a cadela de sua algoz. ;Silvia dizia que o cocô e a barata eram meus remedinhos;, conta a menina.
O Correio Braziliense teve acesso às anotações de Lucélia. É um diário de maldades escrito sem adjetivos, sem reclamações, onde a lágrima sufocada da escritora parece molhar em segredo cada linha, cada frase não acabada. As palavras documentam a dor da adolescente, a tirania de sua feitora e a omissão da família Calebrese, um marido, uma empregada e uma avó, todos moradores da mesma cobertura duplex, onde a pequena Lucélia, em noites de sorte, dormia encolhida no chão da área.
Silvia roubou a infância de Lucélia durante dois anos. Na manhã de 17 de março, policiais encontraram a menina amordaçada e acorrentada no teto, prenderam a empresária e espantaram o Brasil com as informações sobre a vilania de Sílvia. No mês passado, ela foi condenada a 14 anos de cadeia em regime fechado. A empregada também está presa.
O Correio foi até Goiânia, entrevistou e fotografou Lucélia com autorização judicial da Vara da Infância. A menina está livre do cativeiro, mas ainda refém das cicatrizes nas unhas, nos joelhos, na língua e na memória. Vive num abrigo para 51 crianças e mulheres vítimas da violência. Está lá há cinco meses. Até agora ninguém se inscreveu para adotá-la.
O pai biológico diz que quer a filha de volta. A mãe biológica também. O juiz da Infância vai decidir até o final de agosto o destino da garota. Quer ponderar sobre o real interesse de cada um pela menina que, ainda este ano, deve receber uma indenização milionária, solicitada pela Procuradoria do Trabalho por conta dos anos de servidão.
O lugar onde Lucélia mora é um abrigo de tragédias, de meninas estupradas pelo pai, espancadas pelas mães, esquecidas pelo Estado. Muitas delas são personagens conhecidas do leitor brasiliense, caso da jovem que ficou acorrentada num porão em Luziânia. A equipe do Correio atendeu os apelos das meninas que também queriam contar suas histórias e ofereceu um caderno para cada uma contar suas vidas curtas e doloridas. Lucélia também ganhou uma agenda nova para escrever a história de seu futuro.
O resultado ficou muito mais forte do que simples entrevistas. É uma espécie de mergulho num sombrio universo íntimo. De hoje até o final da semana, os escritos dessas meninas e moças estarão publicados no jornal. E elas, como Lucélia, avisam: esperam mais que leitores. Aguardam defensores.
A DOR DA TRAIÇÃO
"Olha, quando eu vivia lá na casa da Silvia, eu gostava no começo. Mas ela começou a me maltratar. Fui morar com a Silvia porque minha tia, Marli, era faxineira da Silvia. Aí, depois de algum tempo, a minha tia chamou minha mãe pra conversar e falou que a Silvia queria me adotar."
A tragédia de Lucélia começa noutra tragédia: o desapego materno. Sua mãe, Joana D´Arc da Silva, pariu sete filhos, mas não ficou com nenhum. Deu Lucélia aos dez anos de idade em troca da promessa de tempos melhores para a criança e de alguns trocados em dias de visita. Joana D´Arc visitava regularmente a filha, mas disse à polícia que jamais notou qualquer marca de tortura no corpo de Lucélia. ;Acontece que estas visitas tinham outro objetivo. Ela mesma confirmou que recebia dinheiro de Silvia;, escreveu a delegada Adriana Accorsi, no inquérito que apurou o caso. ;Joana tinha o hábito de dar os filhos. Ela simplesmente deu Lucélia;.
Lucélia aprendeu a conviver com a violência desde pequena. Sua mãe não era santa, o pai tampouco. Os dois passaram seis anos juntos. Viviam às turras, Joana chegou a registrar ocorrência de agressão física contra o companheiro, Lourenço Rodrigues, vendedor de pastel nos canteiros de obras goianos.
Ensurdecida pelas brigas, Lucélia comemorou quando a mãe anunciou a mudança para a casa da mulher que prometia adotá-la.
O PRIMEIRO DIA
"Fiquei com medo de minha tia não me levar, acordei às 5h30 e fomos. Quando eu cheguei, cumprimentei a Silvia, tomei café e logo depois pedi para banhar na piscina. Tomei banho e ela falou que tinha um bebê chamado MatHeus. fui brincar um pouco com o nenê. fiquei feliz porque vi que o MatHeus gostou de mim. No outro dia, ela me falou quais seriam as minhas obrigações."
No princípio, Lucélia era uma espécie de mucama na casa de Silvia. Trabalhava de doméstica, de babá e ganhava alguns agrados da patroa. Foi matriculada no Colégio Militar, recebeu aparelhos nos dentes e algumas mudas de roupa. Às vezes, a menina podia ir à piscina e brincar no playground do prédio, no simpático Setor Marista em Goiânia, onde a família Calabresi morava numa cobertura alugada por R$ 1.500.
O cotidiano de mucama se transformou em calvário de animal em menos de um ano. Na Páscoa de 2007, a empresária escreveu uma carta para Lucélia, na qual dava sinais de sua perversão. ;Tia Silvia; fala que não compactua com maldades, insinua que a menina roubou ovos de chocolate e em tom ameaçador avisa: ;Nós colhemos, o que plantamos%u2026Pensou que iria ficar com os ovos, não é mesmo ?;.
A partir de então, Silvia começou a confinar a criança. Só levou Lucélia até a casa do pai em três ocasiões. Seu Lourenço não era o mais presente dos pais, mas conta que se esforçava para ver a filha no recreio do colégio, onde aparecia de vez em quando com seu carrinho de guloseimas. ;Eu dava balinha pra ela;, diz o homem.
;Mas a Silvia me proibiu de aparecer, dizendo que eu estava estragando a rotina da Lucélia com doces. Eu obedeci;, conta o ambulante. ;De repente, eu comecei a ficar isolada. Não saía mais de casa;, emenda a menina, sempre um pouco tristonha, mãos grandes, grossas e calejadas pelas intermináveis horas de trabalho no passado.
PANO DE CHÃO
"Eu acordava às 5h15. Fazia minhas obrigações. Limpava o quarto do Matheus, limpava o quarto dos meninos e depois o quarto da vó Lourdes. Depois, descia e limpava lá embaixo. Limpava tudo, lavava os banheiros, o quintal."
Vó Lourdes é a mãe de criação de Silvia. Por incrível que pareça, a empresária sabe o que é viver sem o amor dos pais. Ela diz que não se lembra de seu pai e conta que, aos cinco anos, foi dada pela mãe a uma família cruel. Ali, segundo Silvia, apanhava e era obrigada a trabalhar. O clima era tão ruim que ela voltou para a casa da mãe. A mãe morreu. Silvia fala que sofreu abuso sexual, percorreu dois orfanatos, até que aos 12 anos foi adotada por dona Lourdes, a ;Vó Lourdes; a quem Lucélia sempre se refere em seus textos.
;A violência contra a criança é uma tragédia de repetição. É um ciclo perverso;, lamenta o juiz da infância de Goiânia, Maurício Porfírio Rosa. ;O passado de Silvia não justifica sua maldade. Tem muita gente que passou pela mesma ou até por coisas piores e não se comporta como ela;, emenda a delegada Adriana Accorsi. ;No dia em que prendemos Silvia, ela foi de uma frieza impressionante. Não falou nada, não derramou nenhuma lágrima.;
Silvia, 43 anos anos, loira, bonita, é casada há 23 anos com o engenheiro Marco Antônio, com quem teve três filhos ; o do meio mora em São Paulo, o menor está com a avó paterna e o mais velho, de 23 anos, foi indiciado por omissão de socorro no processo de Lucélia, porém foi absolvido pela Justiça. O marido confessou que sabia de boa parte dos castigos impostos pela mulher e admitiu que Lucélia lhe mostrara o dente quebrado por Silvia e lhe pedira ajuda duas semanas antes da prisão da empresária. O engenheiro não fez nada e terminou condenado a 18 meses de serviços comunitários.
O PRIMEIRO CASTIGO
"A primeira vez que Silvia me colocou de castigo foi no banheiro. ElA me trancou e me deixou lá. Fiquei de castigo porque eu estava com sono. No dia seguinte, ela me levou de novo para o banheiro e me bateu com o cinto. Eu sempre apanhava por causa do sono."
A rotina de Lucélia começava e terminava de madrugada. Acordava antes das 6h e dormia depois da meia-noite. Ficava tão cansada que dormia em sala de aula. Quanto mais sono tinha, mais apanhava. Quanto mais apanhava, mais manchas roxas apareciam em seu corpo. Com medo de ser descoberta, Silvia proibia a menina de ir à aula e a obrigava a usar roupas de mangas compridas na frente das visitas. Em agosto do ano passado, Lucélia foi obrigada a largar o colégio e terminou reprovada por faltas.
TORTURA
"Por qualquer motivo, Silvia me espancava. De cinto, de chinelo, de rodo, de cabide. Ela me afogava no tanque, batia nos dedos dos meus pés com martelo, cortou minha língua com alicate, sempre apertava os dedos das minhas mãos na porta. Ela também jogava muitO minha cabeça na parede e me dava choque na máquina de lavar."
A partir de novembro de 2007, as surras viraram tortura e um quartinho no segundo andar da cobertura virou cativeiro. Foi lá que, na manhã de 17 de março, os policiais encontraram Lucélia e choraram diante da cena de terror, conforme o texto principal do inquérito: ;A criança tinha a boca amordaçada com um esparadrapo, as mãos envolvidas em luvas estavam amarradas com barbantes em uma escada, os pés envolvidos em sacos plásticos estavam acorrentados. Os policiais choravam em pranto ao ver aquela cena. A criança assustada mostrou a eles onde estavam dois alicates sujos de sangue e então mostrou a língua toda mutilada e disse que Silvia usava os alicates para cortar sua língua.;
PIOR DE TUDO
"A pior coisa foi comer barata e cocô do cachorro. Ela chamava o cocô de cachorro de remedinho. Ela falava assim: 'pode colocar o remedinho na boca de novo'.Eu colocava. Ela falava: 'agora vou te dar outro remedinho'. E dava barata. Ela tirava a barata de dentro da bolsa."
No dia do aniversário de Lucélia, 5 de novembro, a empresária ligou para o pai da menina e o convidou a ir até o apartamento. Lourenço achou que teria uma festinha para a filha, arrumou seus outros dois filhos e foi até o prédio. Não teve bolo nem comemoração alguma. Os parentes de Lucélia não puderam entrar no apartamento. Viram a menina rapidamente na escada. Ela estava chorando e machucada. ;Perguntei para Silvia e ela me disse que a menina tinha caído do balanço. Depois disso nunca mais consegui subir no apartamento da Silvia, ela não deixava;, diz Lourenço, o pai de Lucélia, que jura estar brigando pela guarda da filha por amor e não pelo dinheiro que ela irá receber. ;O dinheiro será dela, ficará guardado no banco e ela só pode tirar quando fizer 18 anos;
MOTIVO
"Um dia eu perguntei para ela por que ela fazia aquilo tudo comigo. Ela falou que eu era filha do demônio e que o demônio tem que apanhar e sofrer."
Lucélia é criança e como toda criança acredita nos adultos. Silvia mandava que ela escrevesse seus passos na agenda, que fizesse todas as tarefas e dizia que ela não podia mentir porque havia um anjo que lhe contava tudo que se passava. A menina acreditava e tentava cumprir as ordens. Não entendia os castigos e várias vezes se sentia culpada. ;Ela me dizia que eu era filha demônio e que estava me libertando dele. Eu acreditava, o que ia fazer ? Eu acreditava nela;, conta a menina, hoje recebendo atendimento psicológico semanal e auxílio emocional da diretora do abrigo onde mora.
;Ela não é uma menina fácil. Ela tem dificuldades graves de relacionamento. Ninguém que passou pelo que ela passou se recupera do dia para a noite. Até hoje, ela tem pesadelos;, conta Maria Cecília Machado, pedagoga, 58 anos, diretora voluntária do Centro de Valorização da Mulher, o Cevam, espécie de paraíso, com piscina, parquinho, quadra e carinho para quem conheceu o inferno. ;Lucélia é fruto de tudo que ela passou. E ela passou pelo inferno.;
MORDE E ASSOPRA
"A Silvia ficava boazinha de vez em quando. Às vezes me espancava e me adulava depois."
A estratégia de Silvia era parecida com a dos carrascos. Arrancava o sangue da menina que prometera adotar ; mas nunca o fez ; e depois se desculpava ou responsabilizava a empregada Vanice Novais (hoje presa e condenada por tortura). Em depoimento à Justiça, Silvia disse que amava Lucélia e que estava tentando educá-la. Lucélia diz que a perdoa e fala que teme reencontrar Silvia. ;Tenho medo dela me matar. Ela é má, má de verdade;, diz a menina, que sonha em ser delegada, quer ter um monte de filhos e uma casa bem bonita. ;Com móveis das Casas Bahia;, planeja.
NOVOS TEMPOS
"Hoje (27/5), QUEBREI A PERNA BRINCANDO. senti muita dor, tomei remédio mas não melhorou. Todo mundo tem que me carregar no colo e eu acho uma beleza: eles me levam onde eu quero."
Lucélia virou celebridade, ganhou um monte de presentes, bicicletas, bonecas, brinquedos, mas não conseguiu até agora realizar seu maior sonho. Morar numa casa com amor. A Vara da Infância ainda estuda qual seria seu melhor destino. Seus pais a visitam regularmente no abrigo. Sua avó paterna, Dona Magnólia, com quem Lucélia jamais teve muito contato, também passou a visitá-la. O Juizado acompanha cada passo dessa nova fase da família. E Lucélia agora escreve tudo num diário fechado a cadeado. Escreve até poesia. ;Olha o que eu anotei: Nunca deixe alguém dizer que não és querida. Antes de você nascer, Deus sonhou com você;.