postado em 06/08/2008 08:56
Esta história é feita de sorte, encontro, transformação, mãos sujas de tinta e um tanto enorme de amor. Amor de amizade. Amor de afeto. Amor que vai se revelando. Amor sem sexo. Amor de verdade. Uma história de um homem e uma mulher, de mundos tão opostos, realidades a anos-luz de distância, vidas e destinos tão improváveis de um dia se cruzarem. Na solidão de ambos, um cuidou do outro. Um protegeu o outro. Ele partiu para sempre, há uma semana. Ela chora. O choro é, ao mesmo tempo, de tristeza, agradecimento e uma saudade infinda. Ela lhe deu todo o afeto que sabia dar. Ele lhe ensinou a apreciar o belo. Ela viveu o belo. Ele, artista consagrado, fez, sem imaginar, nascer nela também uma artista genuína.
Criador e criatura. Agradecida, ela o pintou. Ele, comovido, muito anos antes de adoecer, colocou o quadro na sala de paredes claras do apartamento simples de dois quartos da 315 Sul. Ele, Athos Bulcão, 90 anos, o homem que iluminou Brasília com seus azulejos coloridos. Ela, Cândida Xavier da Costa, 76. Ele, o patrão, o homem culto, viajado, amigo de Portinari, Oscar Niemeyer, Lucio Costa, Juscelino Kubitschek e tantos outros. Ela, a empregada da casa dele, a mulher da roça que, envergonhada, se obrigou a aprender a ler e a escrever para anotar melhor os recados de telefone e não fazer feio diante do homem letrado e exigente. Essa história é boa demais. Boa de contar. Boa de ouvir. Melhor ainda de escrever.
Ainda menina, em Niquelândia, interior de Goiás, Cândida queria ser enfermeira.;Sempre tive vontade de sair dali. Sonhava morar numa cidade grande. Achava bonito como elas (as enfermeiras) cuidavam das pessoas;. Mas a realidade em que vivia era outra. Ao invés dos hospitais e roupas brancas, a roça era seu destino. Ela, junto com os pais e os quatro irmãos, plantaram arroz, milho e feijão. ;A vida sempre foi muito dura;, ela conta. Por causa do trabalho, a menina só foi à escola por nove meses. ;Só aprendi a escrever o meu nome. Lia quase nada.;
O tempo passou. Um dia, aos 36 anos, pela primeira vez, ela finalmente deixou o interior de Goiás. Veio a Brasília para acompanhar uma cunhada, que estava com problema de saúde. Pisava, pela primeira vez, na terra de JK. Era 1969. Brasília ainda engatinhava. ;Meu pensamento era ficar por aqui e arrumar uma oportunidade de trabalho. Não queria mais voltar pro interior;, ela diz. E assim se fez. Parou na casa de parentes, em Taguatinga. A cunhada se curou. Voltou para Goiás.
A moça, então, começava a desafiar a cidade que nasceu de um sonho. E logo o primeiro emprego apareceu. Virou doméstica em Taguatinga, na casa de um professor. Era tudo que sabia fazer. Ficou ali por um ano. Mas logo alguém lhe contou que no Plano Piloto pagavam melhor salário às empregadas domésticas. E se mudou para a casa de um sargento, na Asa Sul. Depois, para o apartamento de um médico. Mas um dia o médico e a família se mudaram para Manaus. Cândida não quis ir. Era início de 1974. ;Já gostava de Brasília, não podia mais ir embora. Meu pai tinha morrido. Seria difícil voltar pra casa. Eu queria aprender mais coisas;, ela conta.
O encontro
Uma amiga, também doméstica, lhe sugeriu que procurasse emprego nos classificados do jornal. Cândida assim o fez. E lá estava o anúncio de um emprego na 404 Sul, Bloco D. Era a casa de Athos Bulcão. ;Eu, até então, nunca tinha ouvido falar nele; ela revela, ainda envergonhada. Recém-chegado da Argélia, o artista procurava dar rumo na sua vida no Brasil. Era sexta-feira da Paixão quando Cândida bateu à porta de Athos. Carregava apenas uma mala. ;Ele me perguntou como era meu costume de trabalho. Eu lhe respondi: ;Doutor, trabalho de domingo a sexta. Só preciso do sábado. Gosto de ir à missa;. Ele me ouviu e respondeu: ;Vamos ver se a gente vai dar certo;;, relata, emocionada, 34 anos e quatro meses depois.
A empregada que estava saindo da casa de Athos, raivosa, chamou Cândida num canto e lhe disse, como se lhe preparasse para o inferno: ;Vamos ver se você vai agüentar. Ele é muito difícil, nervoso e exigente. Quer tudo com pressa;. Cândida tremeu. Uma semana depois, ainda sem um conhecer o outro, o dono da casa viajou. Foi para o Rio de Janeiro. E a primeira grande prova de Cândida. A conta de luz seria cortada por falta de pagamento. Athos esqueceu de lhe deixar o dinheiro.
Cândida não pensou duas vezes. Soube que ali perto havia uma moça que precisava de faxina. Ela foi até lá e fez a faxina. Athos ligou para casa exatamente na hora em que a empregada estava fora. E pensou, do Rio de Janeiro: ;Ela foi embora;. Mandou um amigo ver o que se passava na sua casa. O amigo bateu e ninguém atendeu. A empregada fez a faxina na casa alheia e correu à CEB a tempo de pagar a conta de luz. ;Tive medo de ficar no escuro, sozinha;, ela diz. Quando Athos chegou, soube do que havia acontecido. Espantando, ele disse a um amigo, que tempos depois contou para Cândida: ;Ela não é a pessoa que pensei que fosse. Julguei mal;.
Nasce a artista
No princípio, a relação dos dois foi muito formal. ;Realmente, ele não era muito fácil. A gente custou a se acostumar um com o outro. Ele às vezes se irritava e depois me pedia desculpas;, diz. Da 404 Sul, mudaram-se para a 106 Sul. Depois, para uma casa, na 709. Tempos depois para um apartamento modesto na 714 Sul e, finalmente, em 1994, para a 315. Foi na 714 Sul que, escondida de Athos, a empregada começou a rabiscar seus primeiros trabalhos. ;Eu ia limpar a sujeira que ficava e olhava ele preparando as tintas, como pintava, como tinha prazer no que fazia. Eu pensava, sozinha: ;Quando tiver uma folga, vou fazer uma coisinha pra colocar na parede do meu quartinho;. E escondida dele, em cima do tanque de lavar roupa, ela começou a se aventurar pelas artes. Com as sobras do trabalho dele, ela montava sua obra. Fazia isso tarde da noite, depois que limpava a cozinha e ele adormecia.
Aos 51 anos, partiu para a pintura. Pintou alguma coisa a óleo. Gostava da pintura abstrata e figurativa, mesmo sem ter noção de que pintava aquilo. Um dia, Athos descobriu as obras de Cândida e lhe disse, comovido: ;Eu não sabia que você era uma artista. Você tem noção de cor;. Ela quase desmaiou. E ele ainda lhe aconselhou: ;Você tem que pintar aquilo que tem dentro de você;. Na manhã de ontem, em lágrimas, a mulher de olhos muito verdes revelou ao Correio, na sala da casa do mestre: ;Mas eu não sabia o que tinha dentro de mim. Precisei descobrir. Busquei inspiração na Bíblia;.
Athos começou a incentivar a empregada. Dava-lhe dicas de cores, estética, espaço. Cândida, então, partiu para pintar a sério o primeiro quadro. Chamou-o de O sacrifício de Abraão. Era 1985. Emocionado, Athos o comprou. Cândida nunca mais parou. Pintou telas e e mais telas. ;Me considerava uma aluna dele, por vias tortas;, ela avalia. E vieram as primeiras exposições. A primeira delas foi em Penápoles, em São Paulo, no Museu do Sol. ;Ele me acompanhou. Foi a primeira vez que viajei de avião e me hospedei num hotel;, ela conta. ;Nesse dia, eu me arrumei toda e ele brincou: ;Lá vem a rainha da Inglaterra;. O professor Athos torcia por mim;, comove-se, mais uma vez.
Consagração
Depois, vieram coletivas no Museu de Arte de São Paulo (Masp), em Cuiabá e várias exposições em Brasília ; do Espaço Renato Russo à Cultura Inglesa. Cândida passou a pintar para viver. Para se embriagar de arte. Pintou tanto que um dia, agradecida a tudo que ele havia lhe dado, pintou o grande mestre, sem que ele percebesse. ;Ficava olhando para ele, enquanto ele trabalhava, e rabiscava. Uma hora ele percebeu e perguntou: ;O que você tanto olha mim?; Aí, ele descobriu que eu fazia o retrato dele.; Às gargalhadas, ele lhe avisou: ;Se não ficar bom, processo você;. Ficou tão bom que o mestre colocou o quadro na sala. Nos últimos três anos, para não enlouquecer, enquanto tomava conta de Athos no Hospital Sarah, Cândida começou a fazer fotomontagens. Ele dava-lhes nomes.
Quinta-feira passada, Athos morreu. Não resistiu às complicações causadas pelo mal de Alzheimer. Cândida chorou desesperadamente. Chora até hoje. Vestiu preto. Na manhã de ontem, enxugando as lágrimas sob os óculos escuros, desabafou ao Correio, com a voz miúda e sofrida. ;Ele foi meu patrão, meu pai, meu professor, meu mestre, o maior amigo que tive na vida;. E prosseguiu: ;Sem ele, eu talvez nem estivesse mais viva. Ele me incentivou a viver. A acreditar em mim, a fazer planos e ter sonhos;. Na última pergunta, no meio de suas obras, a empregada de Athos admite, apaixonadamente: ;Hoje, me considero uma artista de verdade;.
Athos não se casou. Nem teve filhos. Cândida também. Athos salvou Cândida. Cândida ajudou Athos a viver. Tornou-a pintora. Há encontros na vida que são realmente decisivos. O do artista reconhecido com sua empregada foi um deles.