postado em 18/08/2008 08:27
;Falo do lugar da experiência;. Dessa maneira simples e direta, Paula Soria, 36 anos, iniciou a apresentação de sua tese de mestrado defendida no Departamento de Teoria Literária da Universidade de Brasília (UnB). O assunto do trabalho era o escritor argentino Jorge Nedich, um dos poucos no mundo que ambienta suas tramas dentro da cultura cigana. Ao dizer que falava a partir do ;lugar da experiência;, Paula comunicava a própria origem aos presentes. Assim como Nedich, ela é cigana ou romà ; nomenclatura usada a partir dos anos 1970 para denominar o grupo.
Na tarde de junho em que concluiu o mestrado, Paula dava novo passo na jornada inusitada que iniciou aos 10 anos de idade, quando entrou na escola. A educação formal é um tema tabu para os ciganos. O grupo dá mais importância à cultura oral do que às letras. ;Para a comunidade, colocar as crianças no colégio é um problema. Os pais têm medo de que elas percam os valores ciganos ou que sejam discriminadas;, conta a pesquisadora. No caso das meninas, a dificuldade é ainda maior, já que as mulheres do povo devem estar mais voltadas às obrigações domésticas e à manutenção das tradições do que aos afazeres do mundo exterior.
A estranha
Quando Paula foi à escola pela primeira vez, os pais pensavam que estavam fazendo uma pequena concessão ao desejo da menina. Não imaginavam que ela se encantaria pelos livros e faria sua história de vida a partir deles. ;Eu queria mais e mais. Chegou um momento em que eles não suportaram a minha vontade de estudar, de aprender coisas;, conta. Veio a ruptura e Paula acabou deixando o grupo com o qual havia passado a infância e parte da adolescência. A essa altura, ela já tinha percorrido acampamentos em vários países da América Latina e em pequenas cidades brasileiras. Entre os 15 e 16 anos, ela não se recorda bem, abandonou a vida nômade e foi viver só. Brasília virou o endereço fixo em 1998, depois que ela passou no vestibular da UnB.
Depois da decisão de deixar o grupo, a moça se enxergou no não-espaço que habitam as pessoas exiladas. ;Para os de fora do grupo, eu era a cigana. Para os ciganos, eu tinha virado uma gadyé;. Gadyé é o termo usado para denominar os estranhos à comunidade e, dependendo do contexto, pode ser depreciativo. Nesse limbo, Paula viveu situações de duplo preconceito. Era olhada com desconfiança pelos ciganos e pelos não ciganos. ;Os ciganos estão associados a estereótipos ruins, isso sempre vem à tona em momentos de conflito;, relata sobre as experiências vividas.
Uma das situações de preconceito aconteceu quando ela cursava graduação em artes cênicas no Instituto de Artes, da UnB. Paula havia ficado responsável por pagar a cenografia de um espetáculo. Ao cobrar a parcela que cabia a um dos colegas, ouviu o desaforo: ;Cigana gananciosa. Só pensa em dinheiro;. Se ela não fosse romà, o tratamento certamente teria sido outro. ;Ele estava devendo e, porque eu cobrei, me ofendeu;, lembra, com uma ponta de mágoa. Dos tempos de criança, Paula lembra dos coleguinhas de turma não ciganos fazerem uma roda em volta dela para bater palmas e gritar em coro: ;Cigana! Cigana! Cigana!”.
Fortaleza
Primeira aluna cigana a concluir o mestrado na UnB, Paula mostra que transformou acontecimentos infelizes como os que relatou em fortaleza. O tema do estudo dela, auto-representação dos ciganos na literatura, é justamente um esforço para dar visibilidade à cultura na qual foi criada. ;De maneira geral, os romà são vistos como preguiçosos, ladrões, desonestos. Os estereótipos são repetidos no mundo literário;, explica ela, que encontrou exemplos de preconceito em obras de escritores clássicos como Miguel de Cervantes. Outros autores ; entre eles o colombiano Gabriel Garcia Márquez, associam os ciganos ao sobrenatural, ao místico. ;Também é uma visão ruim, pois nos transforma em seres exóticos;, comenta Paula.
De acordo com a pesquisadora, os estereótipos se engarrafam nos livros porque os autores gadyés desconhecem a cultura cigana. E também porque, ao desprezar a escrita, os próprios ciganos perdem a oportunidade de adquirir voz literária. Na opinião de Paula, as histórias de Jorge Nedich (inédito no Brasil, dois de seus livros, El aliento negro de los romanies e Gitanos para su bien o su mal foram estudados por Paula para a tese de mestrado)são um avanço justamente porque foram escritas por uma pessoa que compreende e pertence à cultura romani. ;Os personagens dele são complexos. Ele consegue retratar a riqueza da nossa cultura, sem usar estereótipos, nem romantizar ;, comenta.
Os livros de Nedich também denunciam a condição de exclusão social à qual os ciganos são submetidos. ;Ele inclui situações de perseguição que o povo cigano conhece bem;, relata Paula. Sem território, pertencentes a múltiplas nacionalidades e com valores que vão de encontro à sociedade ocidental ; eles, por exemplo, têm dificuldade em vender sua força de trabalho ;, os romà são vistos com estranhamento por onde passam. ;Os ciganos estão à parte, ninguém se preocupa com eles;, lamenta Paula.
Novos ciganos
Mas a pesquisadora admite que a exclusão, em certa medida, é provocada também pelos ciganos. ;A cultura romà é muito tradicionalista, não aceita concessões como, por exemplo, a educação formal e a disputa de empregos normais;, conta. Na condição de romà que se esforçou para adquirir títulos na academia, Paula garante que isso não a fez desprezar a cultura de seu povo. ;Eu apenas me sinto um pouco mais crítica, mas já existem outros ciganos que pensam como eu;. Nedich e alguns ciganos de outros países com quem ela mantém contato defendem uma maneira vanguardista de ser cigano, na qual os romà dialogariam com outras culturas sem contrariar seus valores fundamentais. ;É possível, por exemplo, estudar e manter a essência cigana;, diz a pesquisadora.
A tese de mestrado de Paula Soria foi muito bem recebida pelos professores e ela pretende desenvolver o assunto ainda mais no doutorado. De sandália de dedo, saia florida, blusa decotada, dezenas de pulseiras e colares, ela parece bastante à vontade no figurino cigana. O visual, contudo, não destoa da estética hippie de outras universitárias. Mas Paula não é igual aos colegas. Perguntada sobre a maneira como celebrou a conclusão do mestrado, conta que fez uma fogueirinha e ofereceu tcháyo aos amigos. Tcháyo é um chá de frutas que os ciganos preparam em ocasiões de festa. As fogueiras são feitas sempre, com o objetivo prático de aquecer, mas também guardam o conteúdo simbólico de renovação e purificação.
Vítimas de perseguição
Apesar de pouco conhecido no Brasil, o termo romà é usado para nomear os ciganos há quase 30 anos. Foram eles próprios que, reunidos em um congresso em Londres, decidiram adotá-lo como tentativa de unificar os três principais grupos que existem (rom, sinti e kalé, que no Brasil se chama calons). A opção também busca, aos poucos, abandonar o uso do termo cigano, pois a palavra acabou carregada por conotações negativas. Na ocasião, também foram definidos um hino, uma bandeira e uma proposta de padronização para a língua.
Atualmente, os romà falam diferentes dialetos com raiz comum no romani que, segundo pesquisas lingüísticas, teria surgido nas antigas línguas indianas. A unificação seria uma maneira de fortalecer os ciganos, já que os grupos têm sido historicamente perseguidos em todo o mundo. No primeiro semestre de 2008, por exemplo, acampamentos ciganos localizados em Nápoles foram incendiados pela população da cidade e os romà, atacados. O preconceito contra os ciganos também fazia parte do ideário de Adolf Hitler, que os mandou para campos de concentração junto com os judeus. Os povos ciganos são originários da Índia.