Cidades

Irmãos com doença rara e letal recebem dinheiro para comprar Óleo de Lorenzo

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postado em 21/08/2008 08:49
Tarde de quarta-feira, 14h30. Kelvi, de 5 anos, chega ao quarto do hospital e olha o irmão fixamente. Toca-o com carinho no braço. Depois o beija na testa. É beijo de quem gosta. Quer que ele levante dali, pra brincar de pique-esconde e pique-pega. Mas Ítalo, 8, de bermuda laranja e camisa verde, não responde. Na verdade, o irmão mais velho de Kelvi não anda, não fala nem ouve mais. Há oito meses, jogava futebol, empinava pipas e era o melhor aluno da sala. Mas ainda há esperança. Não de cura, mas de que os sintomas danosos da doença cessem. Pelo menos retardem mais um pouco. Kelvi também tem a mesma doença. Começou a arrastar a perninha direita e tem reclamado de alguma coisa que o impede de enxergar. Apesar de tudo, essa ainda é uma história de esperança. E de como qualquer fiapo de esperança pode representar um milagre. Na verdade, milagres têm o tamanho do que se possa dar a eles. No Dia dos Pais, 10 de agosto, Kelvi começou a tomar um remédio que pode fazer com que os sintomas demorem a comprometer sua vida. Passou a arrastar menos da perna. A visão ficou menos escura. Kelvi tem esbarrado menos nas coisas pela casa. E já disse à mãe: ;Vou tomar o remédio pra ficar forte e crescer do tamanho do céu;. Há dois dias, no Hospital Regional da Asa Sul (Hras), onde está internado há pouco mais de um mês, Ítalo tomou pela primeira vez o mesmo remédio. Uma tia que passou a noite toda com ele ; enquanto a mãe, exausta, descansava em casa ; testemunhou, com alegria na voz, o que viu: ;Ele não chorou nem ficou agitado. Até a febre passou;. A doença é tão rara que existem apenas oito casos dela em todo o Brasil. Na quinta-feira passada, o Correio contou, com exclusividade, o drama dos dois irmãos de Santo Antônio do Descoberto (GO) ; cidade do Entorno goiano, a 50km do Plano Piloto. Ítalo e Kelvi têm adrenoleucodistrofia (ADL), doença rara e letal que destrói o sistema neurológico. E o medicamento que ambos passaram a tomar na tentativa de amenizar os sintomas do mal foi revelado no filme O Óleo de Lorenzo, que emocionou platéias pelo mundo inteiro, em 1992. No filme, estrelado por Susan Sarandon e Nick Nolte, baseado numa história real, os pais de Lorenzo não se conformaram com o diagnóstico dos médicos. Mais do que isso: não aceitaram o tempo de vida que deram ao menino, então com 6 anos. Mergulhados em bibliotecas e vasculhando livros, Mickaela e Augusto Odone estudaram tudo sobre a rara doença. Descobriram um remédio que podia retardar o pior. Mas esbarraram no preconceito, na desinformação e na impaciência daquela gente de jaleco branco, que, na sua total arrogância, não os escutaram. A alegação para não reconhecer o remédio era de que não havia comprovação científica. Lorenzo, que não chegaria à adolescência, segundo esses próprios médicos, morreu de pneumonia, no dia 30 de maio deste ano, aos 30 anos. Hoje, alguns cientistas são categóricos: o Óleo de Lorenzo não traz a cura da doença, mas pode ajudar na estabilização dos sintomas. E a batalha de Edilson da Silva Urany, de 28 anos, e de Denise Araújo Cardoso, 27, pais de Ítalo e Kelvi, também tem sido grande. Peregrinaram por quase todos os hospitais públicos e alguns particulares do DF. Primeiro, veio o diagnóstico terrível. Depois, a batalha para buscar a melhor conduta. Uma médica do Hospital Anchieta lhes falou pela primeira vez do filme O Óleo de Lorenzo. Aconselhou-os a assistir. Eles se enxergaram nos pais de Lorenzo. Choraram. E também se encheram de esperança. Descobriram que em São Paulo uma distribuidora importava o medicamento dos Estados Unidos e do Canadá. Mas esbarraram no primeiro golpe: não podiam comprar o remédio. Um frasco de 500ml do óleo custa R$ 591. E dá apenas para duas semanas. Edilson é balconista de farmácia, ganha R$ 700 por mês. Denise é dona-de-casa. Uma endocrinologista do Hospital Universitário de Brasília (HUB) lhes disse, comovida: ;Se fosse meu filho, eu daria o Óleo de Lorenzo;. Denise chorou. Sabia que não teria condições de comprar. A rede de saúde pública do DF não dá a medicação. Outra médica, de um hospital público ; na sua prepotência e insensibilidade assustadoras ; desdenhou, sem meias palavras: ;Pra que fazer o Estado pagar medicamento tão caro? Não vai adiantar mesmo. É desperdício%u2026; O balconista de farmácia e a dona-de-casa contaram com a ajuda daquela gente simples de Santo Antônio Descoberto. A comunidade se juntou e fez bingos, rifas, torneio de futebol beneficente. Até a igreja colaborou. Edilson e Denise conseguiram comprar dois fracos do Óleo de Lorenzo. Há 20 dias, Kelvi, que apresenta sintomas mais brandos da doença, começou a tomar o remédio. Na noite de quarta-feira, receitado pelo neuropediatra do Hras Sérgio Henrique Veiga ; que acredita na vida e prometeu aos pais que daria o óleo para os dois ;, Ítalo também iniciou o tratamento. Justiça Há uma semana, o telefone dos pais de Ítalo e Kelvi não pára de tocar. A ajuda vem de todos os lados. ;É de Brasília, do Entorno e até de outros estados;, diz o pai. ;Eu nunca pensei que as pessoas fossem ainda tão boas. A gente não sabe nem como agradecer. É a prova de Deus;. As doações em dinheiro na conta não cessaram. Junto com tanta solidariedade, uma boa notícia ; A Defensoria Pública do Distrito Federal entrou na história. A defensora Emmanuela Furtado, 37, ajuizou ação contra o GDF para o governo arcar com as despesas do remédio.;Eu fiquei constrangida quando o pai, aqui na minha frente, ainda me agradeceu, humildemente. É um direito da família, um dever do Estado;, reflete, comovida, Emmanuela. No fim da noite de ontem o GDF informou que, apesar de não ter registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), vai autorizar a compra do medicamento, mesmo. A ação já chegou à mesa do juiz Rômulo de Araújo Mendes, da 5ª Vara de Fazenda Pública, para que ele se pronuncie sobre o caso. ;Se a gente receber o óleo do governo, todo o dinheiro que as pessoas depositaram na nossa conta será usado para adaptar o quarto do Ítalo, quando ele tiver alta, e deixar parecido ao do hospital;, informa o pai. A mãe, resignada, desabafa: ;Não importa como ele vai voltar. A gente só quer que ele viva do nosso lado o tempo que Deus quiser;. Kelvi faz planos para quando Ítalo voltar: ;A gente vai jogar futebol na escolinha, né, mãe?;. Ela responde que sim. Ele acredita nela. No hospital, Kelvi beija o irmão. Pede baixinho pra ele conversar. Milagres são do tamanho do que se quer sentir. Ou viver. SOLIDARIEDADE Contato com Edilson, pai de Ítalo e Kelvi ; (61) 8414-5562.

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