postado em 29/08/2008 10:40
A semana começou com a estréia do faroeste A volta dos sete homens no Cine Brasília e terminou com uma caçada sangrenta a sete moços que não voltaram para casa naquela quinta-feira, 29 de agosto de 1968.
O bangue-bangue de Burt Kennedy contava a saga de um grupo de mexicanos pelos Estados Unidos e era a continuação do famoso Sete homens e um destino, estrelado por Charles Bronson.
Como no filme, os sete estudantes caçados pelos corredores da Universidade de Brasília há exatamente 40 anos tinham um único destino: enfrentar a ditadura. Às 10h, cerca de 50 carros da polícia fecharam as ruas que davam acesso ao câmpus.
Os policiais chegaram com metralhadoras, mosquetões e pistolas. Espalharam medo e bombas de gás lacrimogêneo. Invadiram salas de aula, quebraram laboratórios, interromperam provas e entraram para a História como os responsáveis pela pior das oito invasões sofridas pela UnB durante o regime militar.
Os militares alegavam que estavam cumprindo mandado de prisão preventiva contra sete alunos subversivos. Prenderam 500 moças e rapazes numa quadra de esportes, carregaram 50 estudantes para a delegacia, atiraram na cabeça de um jovem.
Mauro Burlamaqui, José Prates, Paulo Sérgio Cassis, Paulo Speller, Samuel Babah, Lenine Bueno Monteiro e Honestino Guimarães eram os procurados. Seis conseguiram escapar. Honestino esperneou, berrou, teve os óculos e o braço quebrados, mas terminou no camburão.
;Hoje é o nosso dia;, gritava o major do Exército, José Leopoldino Silva, responsável pela prisão de Honestino, segundo relato de Antonio de Pádua Gurgel, autor do livro A rebelião dos estudantes, publicado pela editora Revan.
O filho de dona Maria Rosa tinha 21 anos de idade, passara no vestibular em primeiro lugar, cursava geologia e presidia a Federação dos Estudantes Universitários de Brasília (Feub), instituição correspondente ao atual Diretório Central dos Estudantes (DCE).
Honestino era militante da chamada Ação Popular (AP), corrente política de inspiração católica. Sua prisão durou pouco. Em outubro ele foi solto e entrou de vez na clandestinidade. Em 1973, voltou para a cadeia e nunca mais retornou para as braços de sua mãe. Seu nome está na lista dos desaparecidos políticos.
Quatro décadas depois da invasão da UnB, o Correio Braziliense rastreou o paradeiro dos sete brasileiros que, em 29 de agosto de 1968, mostraram para o Brasil que a juventude de Brasília não se curvaria à ditadura. Dois deles morreram. Um mudou de país. Três seguem na militância política. A seguir, a história desses sete sonhadores:
Mauro Burlamaqui
Mauro estudava direito e acabara de passar a presidência da Federação dos Estudantes Universitários de Brasília (Feub) para seu colega Honestino Guimarães. Os dois militavam na mesma corrente política. Burlamaqui era um pouco mais velho, ingressara na universidade em 1965 e tinha 24 anos quando o câmpus foi invadido pela polícia em agosto de 1968.
;Ele se escondeu na minha casa. Eu morava numa república de estudantes de medicina em Sobradinho;, lembra Marcus Vinícius Ramos, 60 anos, radiologista aposentado que, há quatro décadas, acolheu o colega militante, mas não conseguiu livrar a própria pele das baionetas. ;Fui preso em 29 de agosto. Fiquei naquela quadra de basquete com centenas de outros colegas, com as mãos para cima e os policiais em volta da gente. Só saí de lá à noite;, conta o médico, hoje de volta à universidade. ;Eu me aposentei e resolvi cursar história. Nunca mais tive notícias de Burlamaqui.;
O advogado Mauro Burlamaqui mora no Rio de Janeiro. Suas batalhas pela redemocratização lhe custaram o emprego público na Câmara dos Deputados. Foi demitido. Chegou a ser candidato a deputado federal pelo PDT por duas vezes, mas não venceu. Aos 64 anos, é um homem amargurado com a história contemporânea do Brasil. ;Esse país envergonha nossa luta daquela época. Nós não éramos um bando de aventureiros. Estávamos lutando pela democracia. E isso custou a vida de muitos amigos;, diz o advogado. ;Honestino foi um deles.;
Honestino Guimarães
Honestino entrou na UnB no mesmo ano em que os militares chegaram ao poder. Em 1964, dona Maria Rosa Monteiro recebeu a notícia de que seu filho de 17 anos passara em primeiro lugar no vestibular. Honestino queria ser geólogo, mas a revolta com a ditadura o empurrou para o movimento estudantil. A militância lhe tirou primeiro a liberdade e depois a vida. Em 29 de agosto de 1968, foi o único preso dos sete ;procurados; pelas forças policiais. Nos três meses que passou na cadeia, Honestino escrevia com freqüência para o pai: ;Tento me comunicar com o senhor para fazer o que há de mais difícil para os homens: comunicar os sentimentos com palavras;.
Seu Benedito Monteiro era louco pelo filho, temia o pior, e fazia o possível para encontrá-lo na clandestinidade ; assim que saiu da prisão, Honestino viveu como clandestino no Rio de Janeiro. ;Meu avô acabou morrendo num acidente de carro que aconteceu porque ele estava tentando encontrar meu tio;, conta Gabriel Romeu Guimarães, 32 anos, sobrinho de Honestino e filho de Norton, o irmão caçula do militante. Há três meses, Norton também perdeu a vida num acidente de moto em Brasília. ;Meu pai lutava pela ética. Eu e meu irmão mais novo (Mateus) também;, diz Gabriel, fundador de uma ONG ambientalista. ;Nossa família sofreu muito com a ditadura.;
Samuel Babah
A ditadura arruinou os nervos e o corpo de Babah. O aluno de medicina, nascido na cidade paranaense de Londrina, conseguiu escapar da prisão de agosto de 68, mas dois meses depois, no Congresso da União Nacional dos Estudantes, em Ibiúna (SP), terminou preso e torturado. Um dos torturadores martelou a cabeça do rapaz com tanta força que lhe provocou um coágulo no cérebro e crises de epilepsia. Os socos na boca necrosaram seu maxilar e o obrigaram a passar por uma série de cirurgias.
Babah deixou o Brasil clandestinamente em novembro de 1970. Foi para o Chile. O exílio durou pouco. Em 1973, o general Pinochet golpeou Salvador Allende. Outra vez, Babah teve de fugir. Viajou para a Europa, vive até hoje em Genebra, na Suíça, onde trabalha na área de finanças numa grande empresa. Ainda sofre com as lembranças. ;Meu filho foi muito castigado pela vida;, lamenta a mãe dele, dona Kisaku Babah. ;Uma vez encontrei com ele em Genebra, tomamos um café, mas ele não me deixou ir até sua casa. Dizia que tinha medo de ser seguido. E olhe que já estávamos em plena democracia;, lamenta o colega Lenine Bueno Monteiro.
Lenine Bueno Monteiro
Lenine é um sobrevivente da ditadura que tenta encarar o passado com bom humor. Urbanista, morador de Goiânia, ele conta que, há 40 anos, escapou dos policiais pelos canos do esgoto da universidade.
;Saí do Minhocão direto no Lago Paranoá. Depois caminhei até a Asa Sul. Consegui fugir, mas ;rodei; em Ibiúna. Fiquei preso até 1972;, relembra o urbanista, hoje pai de três filhos e ainda metido em política na área de planejamento urbano.
;Não tenho partido. Ajudei a fundar o PT em Goiás, mas me decepcionei com o partido há bastante tempo;, diz o ex-colega de cela de outro dos sete perseguidos na invasão de 68. ;Paulo Speller ficou preso comigo, mas saiu antes de mim.;
Paulo Speller
Speller tinha 19 anos e presidia o Centro Acadêmico de Psicologia quando os policiais tomaram a universidade com o pretexto de prender o rapaz e seus seis colegas. ;Eu estava em casa, morava nas chamadas casinhas (alojamentos no meio do câmpus). Quando vi o movimento da polícia, pulei a janela e saí correndo;, conta.
Paulo fugiu da UnB nos anos 1960, mas até hoje vive na academia. É reitor da Universidade Federal do Mato Grosso e vice-presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).
Speller aprendeu cedo a comandar as disputas políticas comuns nas universidades. ;Quando Honestino foi preso, acabei presidindo a Feub em seu lugar até eu ser preso em Ibiúna. Prisão é sempre ruim. Em qualquer lugar, em qualquer época.;
José Prates
Ele virou o que os jovens dos anos 60 chamariam de político burguês. José Prates, ex-aluno de arquitetura da UnB, é prefeito da cidade mineira de Salinas pelo conservador PTB e em outubro tentará a reeleição pelo mesmo partido. A legenda é bem diferente da radical Polop, organização que ele integrava nos tempos de militância estudantil. Prates foi preso, passou 10 anos no exílio e hoje tem pouco contato com os colegas do passado. ;Estou num comício agora. Vivo em comícios desde menino;, diz. ;O mais interessante dessa geração é que eles faziam política com paixão;, analisa a historiadora Geralda Dias Aparecida, uma das maiores especialistas brasileiras na história do movimento estudantil. ;A invasão de agosto de 68 representou um endurecimento do regime militar.;
Políticos da oposição e da situação defenderam os estudantes. Liderados pelo então deputado Mário Covas, parlamentares saíram do Congresso naquela manhã e foram até o câmpus socorrer os jovens. A polícia não se intimidou. Covas apanhou, o deputado Santilli Sobrinho também. Três dias depois, em 2 de setembro, o deputado e jornalista Márcio Moreira Alves subiu à Tribuna da Câmara e fez o famoso discurso criticando a invasão. A fala é apontada até hoje como a gota d;água para a edição do Ato Institucional número 5, o A1-5, símbolo dos piores anos da ditadura.
Ao fim daquele 29 de agosto, as forças de segurança deixaram um rastro de sangue e pânico na universidade. Valdemar Alves da Silva Filho, aluno do terceiro ano de engenharia civil tomou um tiro na cabeça e passou por várias cirurgias. Os militares não reconheceram a autoria do tiro e disseram que também haviam sido alvos da violência estudantil. Uma comissão parlamentar investigou o caso e concluiu que a resposta dos estudantes se resumiu a pedras e correria. ;Meu marido conseguiu correr;, lembra Maria dos Reis Santos Cassis.
Paulo Sérgio Cassis
Paulo Cassis não está mais aqui para contar sua história. Integrante do Comitê Central do Partido Comunista até o último dia de vida, morreu há três anos do coração. Em 1968, tinha apenas 22 anos. Honestino era seu grande amigo. Cassis, aluno de engenharia elétrica, conseguiu fugir dos militares depois de passar o dia inteiro escondido na sala dos professores do departamento. Trocou Brasília por São Luís, no Maranhão. ;Ele era um exemplo para todos nós;, diz a viúva, dona Maria, aos 58 anos, moradora de Taguatinga. ;Meu marido e sua geração viveram por um ideal.;
Paulo e Maria tiveram três filhos. Rosa Mara, 24, estudante e funcionária da UnB, se interessa pela política como o pai. Em abril último, participou da ocupação dos alunos à reitoria. ;No tempo do meu pai, foi a polícia que invadiu a universidade. Agora, foram os estudantes que a ocuparam em nome da ética.;
BRASÍLIA, 29 DE AGOSTO DE 1968
* Temperatura
24ºC (máxima)
12,5ºC (mínima)
50% de umidade relativa no ar.
* 20 desenhos em nanquim do artista plástico Athos Bulcão estão reunidos em exposição aberta hoje.
* Athos é um dos pioneiros de Brasília que já abriga
451.200 habitantes. Vivem na novíssima capital do Brasil, inaugurada em abril de 1960. Os jovens são mais velhos do que a cidade. Freqüentam o Beirute, o Amarelinho e o Bar dos Inocentes. Há apenas 5 salas de cinema no Plano Piloto.
* A cidade ainda tem cara de canteiro de obras. Estão em construção a Catedral, o Palácio do Itamaraty e o Palácio do Buriti.
* Os governantes, que antes insistiam em despachar no Rio de Janeiro, começam a fazer da capital uma realidade. O presidente do Brasil é o marechal Artur da Costa e Silva ; o segundo militar a ocupar o cargo após o golpe de 1964. São suas as palavras:
;Esta é a capital da República e daqui governarei o país. A revolução aceita o desafio de Brasília;