Cidades

Cegos mostram como fazem para driblar a ignorância que encontram no dia-a-dia

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postado em 14/09/2008 08:40
O instinto guia uma fileira de cegos por corredores desconhecidos em um ambiente onde não há nomes, modos ou princípios. Seguidos atropelos e tropeções são inevitáveis no terreno cheio de obstáculos. Ocorrem com a mesma constância da falta de respeito e da ignorância. Assim como os personagens do filme Ensaio sobre a cegueira ; dirigido por Fernando Meirelles e lançado em Brasília na última sexta-feira (não recomendado para menores de 16 anos) ;, os portadores de deficiência visual que vivem na cidade enfrentam barreiras físicas e sociais de convivência. Os cegos imaginados pelo escritor português José Saramago, autor do romance que deu origem à película, ficaram enclausurados pela falta de visão. Deixaram de enxergar o próximo como um humano. Com a telefonista Naara Felipe da Silva Guedes, 27 anos, aconteceu o contrário: a cegueira iluminou a vida dela. ;Tive que perder a timidez para me virar e pedir ajuda. Descobri que tenho o dom da fala;, disse a jovem. Ela perdeu a visão aos 19 anos, devido a um descolamento da retina em conseqüência da diabetes que carrega desde menina. Naara pensava que ser cego era como ver uma televisão fora do ar. No entanto, a experiência mostrou que ela não enxergaria mais aquele movimento do cinza trocando de lugar com o branco rapidamente. ;Mas quando eu olho pela janela, sei que o dia está claro;, explicou. Naara não se intimida com as calçadas quebradas do Plano Piloto, nem com os carros estacionados onde não deveriam. Todos os dias, ela sai do Riacho Fundo 2, onde mora, e segue para a Asa Sul, onde trabalha, passeia e se diverte fazendo compras. Pegar ônibus seria tarefa fácil para ela, não fosse a grosseria de passageiros e motoristas. ;Quando estou sozinha na parada, acontece do ônibus não parar. Alguns motoristas ficam bravos porque eu paro todos para perguntar aonde vão;, comentou. E sempre tem aquele que não avisa qual é o veículo certo ou murmura e com má vontade, achando que cegueira pega. O estudante José Alves Neto, 31 anos, deficiente visual desde os 2 anos, pega o primeiro ônibus do dia às 5h50 e também precisa da ajuda de outros passageiros para subir no veículo certo. Depois de duas horas de viagem (de Águas Lindas até o Setor Policial Sul) prestando atenção nas curvas e quebra-molas, ele percebe que a parada está próxima e se levanta. Sem pedir informação ao cobrador, ele se levanta e desce. Acerta em cheio. ;Sei quando ele entra na Asa Sul, sempre sei onde o ônibus está. Só peço ajuda se vou dormindo no caminho ou se quero ir a algum lugar que não conheço;, explicou o estudante. Rotina O dia-a-dia de Naara e Neto é corrido. Ela acorda às 5h30, faz o café do marido, Davi Sousa Guedes, 28 anos, operador de telemarketing, e arruma o almoço, que leva para o serviço. Trabalha como telefonista do Integra, instituto de apoio a deficientes. Por volta das 16h, o marido (que tem apenas parte da visão) chega para buscá-la e os dois pegam um ônibus até a Rodoviária. De lá, seguem para o Riacho Fundo 2. Às 19h, ela está pronta para a jornada noturna: pega um ônibus até uma escola de Santa Maria, onde está concluindo o ensino médio. Em dia de folga, vai à Água Mineral, clube ou show de música. ;Acho que o deficiente visual é capaz de tudo, mas com algumas limitações. Meu único problema é que nem todos os livros existem em braile, então tenho que encontrar alguém disposto a ler para mim;, comentou. Neto passa a manhã no Centro de Ensino Especial de Deficientes Visuais (CEEDV), onde conta com o apoio de voluntário para estudar o conteúdo cobrado em concursos públicos. O material dele é preparado no Centro de Apoio Pedagógico da escola (CAP), especializado em braile. Ele almoça com os colegas e, à tarde, estuda informática no Integra. Segue para a Rodoviária, o lugar mais difícil de se locomover, na opinião dele. ;As pessoas esbarram, chutam a bengala, não respeitam mesmo. Você pede informação e elas apontam com os dedos;, reclamou. Em meio à multidão apressada, Neto aparenta ser o que mais enxerga entre os passageiros ; é um dos poucos que não atropela os outros passageiros. Ele chega em casa e vai ao encontro do filho, João Pedro, 2 anos, que teve com a esposa, também cega. Neto passou a infância e a adolescência em uma fazenda no interior da Bahia, sem saber o que era bengala ou escola. Aos 25 anos, se mudou para Águas Lindas com parte da família para fazer um tratamento no Hospital de Base. Por aqui, conheceu a sala de aula e aprendeu braile ; escrita com pontos em relevo usada pelos cegos para ler e escrever. Saiu de casa e fez amigos. Ganhou liberdade, assim como Naara, poucos meses depois de ter perdido a visão. Assim que ficou cega, a telefonista ganhou a companhia de uma senhora que fazia tudo por ela: dava banho, separava roupa, etc. Mordomia para alguns, tédio para Naara. Certo dia, ela convenceu a acompanhante a deixá-la sozinha, arrumou o cabelo, pegou algum dinheiro e pulou o muro de casa. Queria aprender a ler, atividade preferida na adolescência. Deu um jeito de chegar ao CEEDV, ganhou uma bengala e marcou a primeira aula de braile. Voltou para casa feliz da vida e deu de cara com o delegado de polícia, que já começava a investigar o sumiço da menina. ;Cheguei na maior cara limpa e minha mãe estava desesperada. Mas eu só ficava em casa, não tinha ninguém para conversar, queria sair;, lembrou. Segundo o último levantamento da Codeplan, em 2004 havia cerca de 8,2 mil deficientes visuais no DF. Para o diretor administrativo da Associação Brasiliense de Deficientes Visuais (ABDV), Antônio Wilson Ribeiro, as principais dificuldades em se locomover na cidade são os carros, semáforos não sonoros e desrespeito à faixa de pedestres. ;Falta a sociedade se aproximar do deficiente e perguntar como pode nos ajudar;, acredita. Outro problema, de acordo com Antônio, é o mercado de trabalho restrito. ;O deficiente visual pode trabalhar em várias áreas, como telemarketing ou ascensorista, mas as empresas dão preferência a deficiências mais leves;, disse. Ao final de alguns minutos de entrevista, Naara lembrou que havia chegado o fim do expediente e era hora de encontrar o marido. Sem vacilar, ela abre a gaveta, pega uma chave, levanta, abre o armário, tira a bolsa e guarda o celular. Chama pelo nome a amiga que passou pela porta sem dizer uma palavra e se despede. Volta para a mesa, guarda a máquina de escrever, coloca a chave na gaveta, deixa os papéis perfeitamente empilhados. Pega a bengala, que só usará lá fora, na rua. Desce dois lances de escada sem perder um degrau. A falta de visão a fez perder algo no caminho? Só o olhar apaixonado do marido, que a aguardava na porta.

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