Cidades

Após ser condenada pelos médicos, garota com o vírus HIV completa 15 anos

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postado em 19/09/2008 08:15
No quadro cor-de-rosa pendurado em cima da cama, a definição do nome dela: ;De origem latina, significa alegria. Extremamente ativa e independente, não gosta de rotina e está sempre aberta a novas idéias. Preocupa-se em satisfazer os desejos de quem não tem ajuda. É meiga, sincera e muito educada;. É a tradução do seu nome. Mas aquele quadro cor-de-rosa poderia dizer mais. Ficaria ainda melhor se acrescentasse: ;É forte, guerreira e se agarra à vida com uma vontade inacreditável. Todo dia nasce e vive novamente. Essa é a sua missão;. Essa é a história da menina de 15 anos, completados em maio, que vive e convive com o vírus da Aids desde que nasceu. Contaminada pela mãe, Marina (nome que usaremos nesta reportagem, mas ela poderia se chamar Isabel, Luísa, Milena, Teresa, Beatriz, Ana%u2026) chegou à adolescência. E, como toda adolescente, faz planos, tem dúvidas, desejos secretos e sonha, sonha toda hora, com os olhos acordados. Marina é espetacular. E nem sempre foi assim. Houve momentos em que os médicos chegaram a falar em fase terminal. No dia seguinte, como milagre, ela renascia. Pesou 6kg aos 9 anos. Foi desenganada. Infecções oportunistas dilaceraram seu sistema imunológico. No dia seguinte, ela acordava e lutava para continuar viva. Desde os 13 anos, ela tem convivido com a melhor notícia de sua vida. Exame de carga viral, chamado de CD-4 ; que detecta a quantidade de HIV no sangue ; mostra a inexistência do vírus. Ou seja, o vírus, até ao microscópio, se tornou indetectável. Cura? Não. Mas a certeza de que a vida continua com toda intensidade. Marina é protagonista de uma história que, se tinha ingredientes para falar de morte, hoje escancara vida. O vírus se escondeu. No sangue, agora a contaminação é de esperança. E como é bom ver seus olhos graúdos dizendo isso. Como é bom abraçar Marina e sentir a vontade de viver dessa menina de 15 anos. Como é bom só ver Marina, mesmo que ela, envergonhada, prefira o silêncio. Na tarde seca e nublada de quarta-feira, Marina recebeu o Correio, na casa onde mora, em Taguatinga Norte. Lá, na Casa Vida Positiva, vivem 21 crianças e adolescentes. São portadores do vírus ou filhos de portadores do HIV. Marina é a mais antiga da casa. A primeira moradora. Chegou ali antes dos 7 anos, depois de ser rejeitada pelo próprio pai (não HIV), que alegou não saber como cuidar da filha. E sumiu no mundo. A avó materna, com quem a menina vivia desde a morte da mãe (Marina tinha 3 anos), disse não ter condições financeiras para ficar com a neta. Nem como tratá-la. Chegou doente, desnutrida e com infecções recorrentes. Vivia mais no hospital do que na instituição. Houve um dia em que uma médica falou para a presidente da Casa Vida Positiva e responsável pelas crianças, Vicky Tavares: ;Não há mais o que fazer. É o fim;. Não foi. Marina sobreviveu. Vicky lhe disse que, se ela quisesse, poderia viver. Marina acreditou naquilo. Ninguém nunca havia lhe dito que ela tinha o direito de viver. Marina saiu daquele hospital e nunca mais voltou. Começou a tomar o coquetel com precisão britânica. No começo, sentia enjôos, vomitava. Mas não desistiu. Aliada à medicação, alimentação reforçada e imprescindível. Marina engordou. Começou a se enxergar no espelho, coisa que rejeitava antes. Gostava da imagem que passara a conhecer. Cresceu. De menininha, entrou na adolescência. Descobriu a vaidade. A vontade de se arrumar. Marina menina aos poucos se transformava em Marina quase mulher. Agora, aos 15 anos, é a típica adolescente. Despertou para as coisas do coração. Sonha, dormindo ou acordada, com príncipes encantados. Tem um quarto todo cor-de-rosa. Computador, Orkut, e-mail, amigos na escola. Foi, pela primeira vez, no sábado passado, a uma festa de uma coleguinha do colégio. Chegou às 20h e ficou até um pouco mais da meia-noite. Dançou, tomou refrigerante e ;ficou; com um ;menino lindo;. ;A gente pegou na mão e demos um beijo no rosto;, ela diz, timidamente. E pergunta, envergonhadíssima: ;Mas você não vai escrever isso aí, né tio?; O tio insistiu: ;Você tá com cara de apaixonada...; Ela devolveu, ajeitando as 25 minifivelas coloridas que usava no cabelo: ;Vamos mudar de assunto, tio? Fico envergonhada...; Preconceito Ninguém naquela festa, nem na escola particular onde Marina estuda este ano, sabe que ela é soropositiva. ;Se as pessoas souberem, podem me rejeitar. As mães até vão proibir as filhas de falar comigo;, ela diz, sabendo o que fala. Vicky, de 59 anos, explica por que decidiu, com Marina, que no novo colégio ninguém saberia: ;Na escola pública onde ela estudava, contamos para a diretora e para os professores. Ela foi muito discriminada. A rejeição era notória;. Por conta disso, Marina silenciou. Não toca no assunto. Nem diz que mora na instituição. ;Isso me deixa triste, não queria que fosse assim, mas é o melhor que posso fazer por mim agora;, ela reflete, com maturidade comovente. Há pouco tempo, mais um golpe para as crianças da casa. Vó Vicky, como é chamada pelos meninos, contratou um professor de música para dar aulas para seus meninos. Marina pulou de alegria. Finalmente, aprenderia teclado, seu sonho. Quando tudo estava marcado, o músico soube, pela própria Vicky, que algumas de suas crianças eram soropositivas. O professor, que dava aulas na própria casa, no Guará, desmarcou a aula no primeiro dia. E esbravejou, numa estupidez inacreditável para um educador. Aliás, para um ser humano: ;A minha escola é familiar. Não quero aidéticos convivendo com meus filhos;. E desligou o telefone. Atônita, Vicky chorou. Marina também. As crianças tiraram suas roupas de passeio e nunca entenderam até hoje por que o ;tio; não as quis em sua casa. Ainda sonham com a música. Marina canta pra eles. Na instituição, que não parece abrigo, mas uma grande família, Marina vira mãe das outras crianças. Os menininhos e as menininhas adoram. E ela cuida de todos eles com ar maternal. Seu quarto cor-de-rosa é disputado a tapas. O colo e o aconchego de Marina valem ouro. ;Eu penso em ter filhos, mas só depois de me casar;, ela se adianta. Vicky a escuta falar. E se emociona. Longe dela, diz: ;Meu Deus, vi uma menina deitada na cama, que só pedia pra morrer. Hoje, ela é luz;. Aos 15 anos, a adolescente cheia de fivelas se tornou vaidosíssima. Às gargalhadas, Vicky entrega: ;Vaidosa é pouco. Ela é peruérrima;. E continua: ;Faz as unhas dos pés e das mãos todo sábado. E gosta de esmalte bem vermelho. Escova também é toda semana. E não sai de casa sem se pintar;. Marina confessa: ;Sou peruazinha, vó;. A delação prossegue. As idas de Marina ao shopping com as colegas da escola são contadas em detalhes. ;Se deixar, ela quer ir todo dia;, fala Vicky. E ultimamente Marina anda rindo à toa. Está num convencimento só. Disseram-lhe que lembra, na expressão dos olhos, a atriz Juliana Paes. ;Eu nem acho tanto;, ela disfarça. Mentirinha. Ela adora ser parecida com Juliana Paes. A menina que lutou pela vida se descobriu bonita. Talvez seja o melhor coquetel, e sem efeito colateral, que toma todos os dias. É a auto-estima, como remédio, resgatada. Sonho no mar Com a carga viral indetectável, Marina fala de esperança. ;Nunca pensei que fosse zerar um dia. Vivia doente, não saía do hospital. Hoje, nem me reconheço no espelho. Se meu pai me visse assim, também não ia me reconhecer;. E revela quando, pela primeira vez, aos 13 anos, soube do resultado que lhe daria força para continuar: ;Chorei, mas foi um choro de alegria;. Na parede do quarto, o ;Salmo 91;. Na Bíblia, aberta em cima da escrivaninha, a marcação em Isaías 48: ;O Senhor anuncia coisas do futuro;. Todos os domingos, Marina vai à igreja. Talvez o futuro já lhe tenha sido anunciado. E ele, o futuro, bateu à porta da menina de 15 anos com cara e gosto de boas-novas. Nas férias de fim de ano, a ;madrinha;, uma voluntária que visitou a casa e se encantou por Marina, lhe deu uma viagem para Porto de Galinhas, em Pernambuco. Ela vai conhecer o mar. E fará um pedido quando molhar os pés pela primeira vez na água salgada. E planos, mais planos, muitos planos. Marina tem a vida inteira para sonhá-los. E realizá-los, um por um. No final da entrevista, o abraço gostoso de despedida. Um menininho de 4 anos pede para o ;tio; carregá-lo. E pergunta, como pedido: ;Você vai voltar?;. Os olhos negros e graúdos da menina de 15 anos brilham. A pele adolescente tem viço. O sorriso esperançoso, de tão bonito, contagia. Marina ; que não é a de Dorival Caymmi, mas também é morena, bonita e também anda se pintando ; tem cheiro de vida. SOLIDARIEDADE Vida Positiva, onde Marina e 20 crianças vivem, é mantida apenas com doações da sociedade civil. Caixa Econômica Federal, agência 1041. Conta corrente 385-0. Operação 003. A casa está sempre aberta para visitas. QNC 3, Casa 16, Taguatinga Norte. Telefone ; 3034-0040 Site: www.vidapositiva.org.br

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