Cidades

Menino com doença degenerativa ganha um computador e cadeira de rodas

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postado em 30/09/2008 07:55
O vôo de Francisco
O telefone toca. Do outro lado da linha, a voz miúda do menino de 13 anos. Ele diz, exaurido de alegria: ;Você não disse que ia chegar? Ela chegou agora, acabei de receber. É linda e é azul;. A emoção é tão grande que a respiração está ofegante. O menino se cansa. É cansaço de tanta felicidade. Do outro lado da linha o interlocutor também é traído pela voz. A cadeira de rodas motorizada, o sonho que acalentava a vida toda, chegou pela caridade alheia. De uma loja na 302 Sul, onde ele a buscou, seguiu para a estação do metrô. Estava com sua mãe. Entrou no trem, como gente grande. As pessoas o fitaram, anestesiadas com a cena. E ao desembarcar com sua ;possante; no Guará 1 (o possante é dele mesmo), ele pediu, ao passar num quiosque ali perto: ;Quero um pastel de queijo com presunto e um caldo-de- cana;. A mãe saciou a vontade do filho. E ele lhe disse: ;Mãe, é como se eu estivesse pisando no chão, andando, correndo de verdade;. A mãe encharcou os olhos de lágrimas. Para quem nunca andou, nunca sentiu seus pés sobre o chão, essa é a exata noção de felicidade. E essa é a história de Francisco Canidé Silva Júnior, contada com exclusividade pelo Correio, no início de agosto (veja fac simile). É a história da luta e da determinação do menino para continuar vivo. A vontade de insistir. De se fazer presente. E driblar a deficiência acreditando que tem superpoderes. ;Outro dia eu sonhei que tava fugindo de um monstro bem grande. Eu corria e ele não conseguia me pegar. Foi muito legal;, ele conta, felicíssimo. Francisco é portador de Distrofia Muscular Espinhal Generativa, Tipo 1. O diagnóstico só foi dado quando o menino completou 6 anos e conseguiu uma consulta no Hospital Sarah. Antes, em outros lugares onde o pai militar morou, as previsões eram as mais sombrias. Nenhum médico conseguiu dizer aos pais o que de fato Francisco tinha. Falaram em anoxia (falta de oxigênio durante o parto), em síndrome muscular. Dissertaram sobre sérias dificuldades neurológicas e físicas pelo resto da vida. Disseram que ele jamais andaria, falaria, se comunicaria. Seria um ser em estado quase vegetativo. A mãe não aceitou aquele diagnóstico. ;Ele tinha vida nos olhos. Eu não poderia ouvir aquilo como verdade absoluta;, ela diz. E não esmoreceu. Colocou-o na fisioterapia. Estimulou. Repetiu a ela mesma que o filho era normal. Francisco foi despertando. O lado cognitivo dele, completamente preservado, sobressaiu sobre a incapacidade de andar e mexer braços. Ele começou a falar cedo. Inteligente, elaborava frases inteiras, completas. Raciocínio perfeito e lógico. Uma noite, ao se deparar com a mãe chorando, ele perguntou o motivo. Ela tentou disfarçar as lágrimas e respondeu: ;É que eu espero um milagre há muito tempo;. O miudinho Francisco a olhou com compaixão e lhe disse: ;Mãe, milagre acontece todo dia;. Naquele exato momento, a mãe olhou para si mesma e viu que o milagre pelo qual tanto esperava estava diante dela, falando com ela e lhe ensinando coisas tão simples, como viver e aceitar as limitações impostas pela vida. Tempos depois, perto dos 10 anos, ele voltou a surpreender: ;Mãe, eu te amo tanto. Nasci assim e a senhora nunca desistiu de mim...; Dessa vez, ela não fez a menor questão de limpar as lágrimas. Espetacular Ao chegar a Brasília, em decorrência de uma mudança de trabalho do marido, Christiane e Francisco peregrinaram por vários hospitais. ;No Sarah, pela primeira vez, tive acesso a um parecer de um laudo. Me falaram sobre a doença do meu filho. Não me falaram de cura, mas de como lhe proporcionar melhor qualidade de vida. Isso fez toda diferença em nossas vidas;, reflete Christiane Vasconcellos, hoje divorciada, 36 anos, três filhos, salário de R$ 480 como atendente de consultório dentário. Aqui, Francisco foi matriculado numa escola pública. A mãe acreditou na inclusão. Uma vez, um professor o chamou de aleijado. Ele chorou. Ela também. Mas Christiane não desistiu. Matriculou o filho em outra escola. Hoje, Francisco estuda no Centro de Ensino Fundamental 2, no Guará 1. Faz a 6ª série. É um dos alunos mais queridos e populares da escola. Quando um colega está triste, ele o escuta. Virou meio conselheiro da turma. Mora com a mãe e as duas irmãs ; Bruna, 15, e Nicole, 11 ; num apartamento modesto, na QI 14. É lá que constrói seus sonhos. É lá que foge de monstros gigantes e os vence como um verdadeiro super-herói. Em 2 de agosto, o Correio contou a luta de Francisco e um pouco de seus sonhos. Sua velha cadeira de rodas estava quase imprestável. Vivia quebrada. Quando ia para o conserto, chegava à escola nos braços da mãe. Francisco tem aparência de um menino de 4 anos de idade. Pesa 13kg e mede 1,21m. É muito frágil fisicamente. De tão finos, braços e pernas parecem que vão se quebrar. Mas a fragilidade acaba aí. Emocionalmente, o menino miudinho é uma rocha. ;Na minha separação, ele dizia: ;Mãe, eu ainda tô aqui. Vou cuidar de você;. Foi ele quem me deu força;, conta Christiane. A história do menino que insiste em viver e dá lições diárias para quem consegue aprender sensibilizou Brasília. E até gente de outros países, que leu a história pela internet. As ligações para sua casa e para o celular da mãe não pararam. ;Até hoje, as pessoas continuam ligando;, ele diz, com a voz mirradinha. A mãe confirma. ;Quase dois messes depois, ainda recebemos telefonemas. É impressionante como uma reportagem foi capaz de mudar a vida dele inteira;, comove-se Christiane. Anônimos, sem alarde Houve gente que ligou dizendo que rezaria. Gente que foi à casa dele para conhecê-lo. Gente que ajudou sem aparecer. Gente que virou amigo. Almoços aos domingos, em bons restaurantes, viraram passeios semanais. A cadeira de rodas motorizada, que custou R$ 9,8 mil, foi uma doação de um grupo de cinco amigos. Eles preferiram o anonimato. ;Nos falamos por telefone. Eles disseram que um dia virão conhecer pessoalmente o Francisco;, conta a mãe. Francisco intervém: ;Não tenho nem como explicar o que tô sentindo. Eu quero agradecer olhando pra eles;. Parou por aí? Não. Francisco mencionou a vontade de ganhar um computador portátil, para ajudá-lo nas tarefas de casa. Ganhou dois, um novinho, doação de um homem que mora no Panamá; outro, meio usado. Um ele usa na escola. Outro, em casa. E virou expert em internet. A primeira coisa que fez: encheu o notebook de casa com fotos de Suzana, a amiguinha da escola por quem se derrete todo. ;Ela é linda;, suspira o danadinho. Depois, baixou mais de 30 joguinhos. Criou e-mail (tadeboa_fcdfsj@hotmail.com). Quando estava mostrando o endereço do e-mail no computador, disse à visita, às gargalhadas: ;Tio, vou aumentar a letra pra você ver melhor. tá?;. E escancarou a fonte do texto e ainda deu cor. Impossível não ver. Até para o mais míope dos míopes. Passa os dias colecionando amigos na rede e está em fase de construção de um blog. Ninguém segura Francisco. Olhando o filho voar na sua possante, a mãe não esconde a emoção: ;Eu pedi a Deus um filho homem. Ele foi ao céu e me deu um filho homem e especial;. Christiane aprendeu a não mais pedir cura (ela sabe que não haverá) e a não contar o tempo. ;Ele tem uma vontade de viver inacreditável. Só peço a Deus que meu filho desfrute do tempo que terá da melhor maneira possível.; Nesse momento, Francisco voa na sua ;possante;, que anda a 14km/h. E grita: ;Mãe, eu tô voando. Tô correndo com meus pés;. Esbaforido, ele pára. Com o coração acelerado, tenta explicar felicidade, sentimento complicado e às vezes difícil de ser verbalizado: ;É uma mistura de emoção e realização de um sonho;. E logo volta a andar com os pés de borracha emprestados. Sente-se livre, liberto, poderoso. É assim que ele decidiu encarar a vida. É assim que ele a faz comoventemente extraordinária. Todos os dias, mesmo com um mar de limitações que carrega.

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