Jornal Correio Braziliense

Cidades

Mesmo proibidos de funcionar donos de pousadas se arriscam

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; Bom dia, eu queria saber se a pousada está funcionando, se tem quarto. ; Oi, tem quarto sim, para quantas pessoas o senhor precisa? O quarto simples sai por R$ 45. ; É o simples mesmo. Mas me diz uma coisa, não estão proibidas as pousadas nas 700? ; Estão sim, mas tem muita gente que precisa, que depende de nós. Por isso, continuamos recebendo. Na parede tem o auto de interdição, mas você aperta a campainha que a gente atende. Sabe o endereço? ; Sei sim, obrigado. O diálogo acima ocorreu na manhã de ontem, por telefone, entre o repórter e a atendente de uma pousada no Conjunto M da 705 Sul, de frente para a W3. Mesmo sem saber quem está do outro lado da linha, a mulher desdenha do lacre da Agência de Fiscalização (Agefis) do Governo do Distrito Federal e confirma que continua recebendo hóspedes mesmo com a proibição que vigora, por decisão judicial, desde 20 de maio. Segundo moradores das quadras, a realidade se aplica a vários outros dormitórios que, além de ignorarem o tombamento do Plano Piloto, se tornaram empresas clandestinas, que prestam um serviço à revelia do Estado. As janelas da pousada citada estavam abertas na manhã de ontem, mas não havia ninguém no balcão, sugerindo que o estabelecimento deu lugar a uma residência. Uma plaquinha com o número de celular da dona Cida, no entanto, desfaz qualquer confusão. Foi ela quem ofereceu um quarto simples por R$ 45.
Poucos metros à frente, no Conjunto A da 705 Sul, duas mulheres batem insistentemente na porta de uma casa que já foi pousada. Procuradas pela reportagem, elas contam que foram vítimas de um golpe. ;Viemos de Boa Vista (RR). Tinha procurado um lugar para ficar pela internet e achei o telefone desta pousada;, relata a bióloga Katiane Sousa Pereira, 35 anos. ;Pediram para pagar a primeira diária adiantada e depositamos R$ 80. É um caso de polícia;, alarma-se a química Margarida Maria Araújo de Lima, 43. As duas vieram à cidade participar de um congresso e precisavam de acomodações baratas e centrais ; como as pousadas das quadras 700. Depois de ligarem sem sucesso para o telefone da pousada, elas resolveram procurar outro estabelecimento nas redondezas. Não tiveram dificuldade: foram recebidas e acomodadas em um dos quartos da já citada dona Cida. O Correio conversou com moradores da 703 e 705 Sul e ouviu deles que o movimento continua intenso em grande parte dos 51 estabelecimentos interditados. ;Na verdade, surgiram pousadas novas no interior das quadras. E em várias delas os clientes são prostitutas e traficantes;, relata um aposentado que prefere não se identificar. ;Ando aqui todo dia e dá medo porque os donos são truculentos. Um deles já veio me ameaçar, achando que eu tinha chamado a polícia uma vez;, relembra. ;A proibição até piorou alguns casos, porque agora está todo mundo escondido e podem fazer o que quiserem. Eu acho que deviam fazer um acordo para que existissem as pousadas, mas como empresas, pagando impostos;, opina uma psicóloga que também pediu o anonimato. Na surdina Como não há mais placas de identificação, é difícil perceber de cara que uma pousada continua funcionado. É preciso observar o movimento de carros de outros estados ou a circulação de pessoas com bagagem ; mais comum no início da manhã, segundo os moradores. O artifício dos donos de pousadas por vezes funciona com a Agefis. A assessoria de comunicação do órgão admite que há uma rede de informantes e que as portas são fechadas quando alguém descobre que o fiscal está na área. ;Mas estamos trabalhando. Há operações semanais;, sustenta o diretor-geral da agência, Rôney Nemer. ;Os autuados são levados para a delegacia. Estamos fazendo nosso trabalho e não podemos ir além disso.; A Agefis não tem números oficiais sobre as autuações, mas divulga que há donos de pousadas que reincidem até quatro vezes. A última operação aconteceu sexta-feira passada e fechou pela segunda vez um estabelecimento no Bloco I da 707 Sul. Os donos são levados para a 1ª Delegacia de Polícia, mas não ficam presos. ;Eles apenas assinam um termo circunstanciado porque é o que a legislação define para o crime de desobediência. E, apesar das várias interdições, a mesma pessoa ainda não veio aqui duas vezes. Uma vez vem o marido. Na outra, a esposa. Na terceira, o irmão. E por aí vai;, explica a delegada Martha Vargas. Ainda segundo ela, os termos são enviados para a Justiça, que define a pena. ;A prisão costuma acontecer apenas em casos de reincidência;, conclui. Apesar do desrespeito pontual, a paisagem da W3 Sul mudou após a decisão judicial. Muitas das antigas pousadas estão à venda ou em obras para recuperar o estilo residencial. Outras empresas, no entanto, continuam de portas abertas nas quadras residenciais. Além dos salões de beleza, já antigos, há agências de modelo, igrejas, lavanderias e até uma loja de roupas na 704 Sul. Memória Fechadas desde maio As pousadas estão interditadas desde 20 de maio. Na época, a Câmara Legislativa, atendendo um apelo de empresários, havia aprovado uma lei que autorizava a emissão de alvarás de funcionamento precários. O governador José Roberto Arruda, no entanto, vetou a lei, obedecendo a uma decisão judicial. Dias mais tarde, os deputados distritais acabaram confirmando o veto. Assim, 51 pousadas, saunas e casas de massagem identificadas nas quadras 700 da Asa Sul perderam o direito de funcionar. Desde então, a Agência de Fiscalização (Agefis) do GDF realiza operações semanais na área e leva para a delegacia os donos de estabelecimentos que insistem em abrir as portas. Muitos, porém, já entregaram os pontos. Várias construções que abrigavam dormitórios hoje estão em obras, numa adaptação para transformar antigas pousadas em residências. para saber mais Conceito de tombamento A interdição das pousadas das quadras 700 da Asa Sul está relacionada com o projeto original do Plano Piloto, desenhado por Lucio Costa, que previu o uso residencial daquele espaço. Esse foi o argumento do Conselho Comunitário da Asa Sul, que moveu ação civil pública contra os estabelecimentos e foi atendido pelo juiz da 7ª Vara de Fazenda Pública, José Eustáquio de Castro. Diante da decisão judicial, o GDF determinou a fiscalização da área. Quem desrespeita a proibição fica sujeito a prisão de até seis meses, aplicada raramente e em casos de reincidência.