postado em 02/10/2008 07:40
O repórter quer falar com o presidente. A secretária atende e diz, educadamente: ;O senhor pode adiantar o assunto? Ele não está no momento, mas assim que chegar eu darei o retorno;. São 14h. No fim da tarde de terça-feira, mais uma tentativa. Dessa vez, o presidente, em pessoa, atende. Quanta honra! Ciente do teor da entrevista, diz que na quarta, pela manhã, pode receber a equipe. Mas pede um minuto, para ter certeza. Checa as anotações na agenda da eficientíssima secretária. Volta e diz que tudo bem. Quarta-feira, 10h. O presidente não está no local combinado. Havia levado parte dos funcionários até o posto de saúde. Eles precisam se prevenir contra hepatite, tétano e rubéola. A secretária diz que vai chamá-lo rapidamente. Mais uns minutos de espera e o presidente, finalmente, chega. O galpão onde despacha está cheio de gente. Quarenta funcionários embevecidos com o novo trabalho, muitas mulheres e alguns poucos homens. Justificativa para a maioria ser mulher? Elas são mais sensíveis e interessadas na função, ouve-se de boca miúda pelos cantos. Todos estão uniformizados, usam luvas e máscaras. O sorriso é de satisfação. Mais que isso. De confiança e orgulho incontidos. Para muitos ali é a primeira chance de emprego formal, com perspectiva de carteira assinada. Estamos na Central de Reciclagem do Varjão (CRV) ; aquela cidade que fica bem pertinho do Lago Norte, mas, para alguns moradores do bairro de classe média alta, mesmo pertinho, estará sempre a anos-luz dali. O lugar onde se realizará o encontro com o presidente está tinindo de novo. Nem acabou de ser construído. Ainda faltam o refeitório, os banheiros, as janelas, mesas e, claro, a sala do presidente. Ele despacha com sua secretária no meio do povo. Mas, mesmo em construção, o galpão começou a funcionar na segunda-feira. O governador deve ir lá amanhã, para a inauguração oficial. O presidente, então, receberá o governador. Será um encontro de autoridades. O Varjão vai tremer. Mas, afinal, o presidente vai ou não chegar para começar a entrevista? Perto das 11h, ele aparece. Desde as primeiras horas da manhã labuta (esse presidente realmente trabalha e parece gostar do ofício). E o homem se apresenta. As mãos calejadas indicam o tanto que já trabalhou na vida. Estamos diante de um presidente de cabelos grisalhos, jeito tímido, sotaque mineiro, 48 anos, oito filhos, 11 netos e uma história de vida comovente. Ex-ajudante de pedreiro, ex-piscineiro e ex-carroceiro, João Batista Côrtes agora é presidente constituído e eleito por uma assembléia. Fez cursos ; não só ele, mas todos os seus funcionários ;, aprendeu a montar um estatuto, teve lições de triagem, saúde, técnicas de segurança e até aulas de etiqueta. Aulas sábados e domingos. Carga horária puxada. ;Antes, eu não sabia como me comunicar com o senhor;, diz o presidente, logo no início da conversa.. Imagina um presidente, eleito e constituído, chamando um repórter de senhor...Sinal do tempos! Sonho realizado Parceria entre Administração Regional do Varjão, do Lago Norte, Sebrae e Serviço de Limpeza Urbana (SLU) transformou em realidade o desejo dos moradores da região. O presidente fala: ;Era o desejo de ter emprego de verdade, carteira assinada, onde a gente pudesse ter endereço do local de trabalho;. Ele mesmo, durante os últimos 12 anos em que foi carroceiro, vivia uma vida à margem. ;Era sofrido demais! O senhor não imagina! Meus filhos me perguntavam onde eu trabalhava e eu não sabia dizer onde;, ele conta. ;Hoje, acordo e sei pra onde venho.; Como carroceiro, João Batista saía de casa com sua carroça, puxada pelo cavalo Mutante, e seguia para o Lago Norte. ;O povo dizia: ;Olha aí o lixeiro;. Era o que mais ouvia na rua;, ele diz. Enfrentava chuva, sol, frio, calor. A incompreensão e a impaciência dos bem-nascidos em seus carros importados quando o viam pelas ruas do bairro. ;Às vezes, eles até me xingavam;. É, os bem-nascidos em seus carros importados também xingam. E como! Xingaram tanto que sua carroça e seu cavalo, no início do ano, não mais puderam circular pelo Lago Norte. Houve dia em que não tinha pão para os filhos no café-da-manhã. E o presidente chorou. Um dia, Luiza Helena Werneck, administradora do Varjão, teve a idéia de criar um galpão de reciclagem na cidade. Era a forma de dar emprego àquela população. Falou com seu colega administrador do Lago Norte. O Sebrae juntou-se ao projeto. Nascia, pela primeira vez, a possibilidade de mudar a vida daquela gente. Mas havia uma contrapartida: todos teriam de voltar à escola. A notícia se espalhou pela cidade. Todos ouviram falar num curso que daria a chance de um emprego de verdade, de uma profissão. A correria foi grande. João Batista, sem sua carroça, com o cavalo Mutante, não pensou duas vezes. Estava lá, no primeiro dia de aula, numa sala da creche comunitária. Dignidade Depois de muita peleja, 40 moradores concluíram o curso de reciclagem. ;É a certeza de um Brasil que pode dar certo;, avalia Luiza Helena, moradora do Lago Norte. ;Meu Deus, a chance desse serviço caiu do céu. Tava desempregada, devendo até o IPTU. Quando receber o primeiro salário, vou pagar tudo;, vibra Dalva Alves da Silveira, 34 anos, cinco filhos. Lucinda Santos, 57, está radiante. Há 15 anos, informalmente, ela empurrava seu carrinho e recolhia o rico lixo do Lago Norte. Depois, reciclava e vendia para empresas. ;Agora, além de voltar à escola à noite, vou ter carteira assinada. Foi tudo que esperei na minha vida.; O presidente dá entrevista e não desgruda o olho do trabalho. A secretária, Ana Carla Rodrigues, 21 anos, ex-doméstica em casa de gente rica do Lago Norte, tem assuntos para despachar com ele. Thaís Cristina da Silva, 19, a fiscal, repara se todos estão usando máscara, se estão de uniforme. Confere também se alguém chegou atrasado. ;Faço relatórios para o presidente;, ela diz. João Batista jura que o cargo não lhe subiu à cabeça. E admite, emocionado: ;Não me sinto importante, mas, pela primeira vez, valorizado. Eu não tinha qualificação profissional. Hoje, se meus filhos e meus netos me perguntarem o que sou, vou responder com orgulho: sou reciclador;. O presidente voltou a estudar o supletivo. ;É na mesma escola onde meus filhos e netos estudam;, ele conta, com orgulho incontido. A mulher do presidente, a primeira-dama da reciclagem, também vai estudar. ;Ela sempre me ajudou. Agora, ela vai se sentir valorizada também.; Escutando a conversa e comovida com o rumo da prosa, Ana Beatriz Goldstein, 42, ex-diretora da Escola Classe do Varjão, onde estudam os filhos do presidente, faz uma revelação: ;É linda a transformação do Batista. Antes, tinha uma postura rude. Chegava à escola gritando, brigando com todo mundo. De pai problema virou pai representante dos pais. Essa mudança se deve à educação. Isso não tem preço;. Hoje, o presidente estará lá, na Central de Reciclagem do Varjão. Vai despachar com a secretária. Ouvir seus funcionários. Reparar o restante da obra em construção. Ao fim do dia, exaurido (sim, esse presidente trabalha) terá a certeza de que sonhos sempre podem ser realizados. Pode até parecer uma história engraçadinha, mas é, antes de tudo, de uma dignidade e transformação comoventes.