Cidades

Leitura em presídio feminino modifica rotina e reduz conflitos

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postado em 24/10/2008 08:35
Pátio passou a ser o local preferido de leitura das detentas
Era ali que as presas se escondiam e arquitetavam mais um de seus crimes. O nome do lugar? ;Ponto cego;, ao lado do pátio, onde elas tomam banho de sol. Hoje, é ali que se mostram. Se deixam ver, se reconhecem e, mesmo com as grades, os enormes cadeados e o eco que transborda, sentem-se mais livres do que nunca. O que era condenação virou libertação. Sonho, perspectiva, alguma chance. A saída. Essa é a realidade do Presídio Feminino da Coméia de Brasília, entre o Gama e Santa Maria. O sonho de um agente de polícia foi ouvido por uma voluntária. A voluntária chamou parceiros, convidou a comunidade. Contou a história para a diretora da cadeia, que se encantou com a idéia e espalhou a boa notícia entre os funcionários. Quarenta e três dias depois, tudo virou realidade. No ;ponto cego; do presídio, em setembro, foi inaugurada a Biblioteca Maria da Penha. Presas lêem, discutem literatura, se emocionam com histórias de amor. E se percebem gente em meio a livros e rumos nunca antes pensados. Enxergam horizontes muito além das grades azuis e dos muros altos com arames mortais. Há três semanas, a imagem do presídio mudou radicalmente. Na hora do banho de sol, presas sentadas nos bancos de concreto, no chão, em cada pedaço de cimento. E o silêncio, antes impensável, grita todos os dias. Nas mãos, livros. Nos olhos, o brilho da descoberta. Na cabeça sem fronteiras, a melhor das viagens: a liberdade. ;Quando eu tô lendo, parece que entro na história. Me sinto parte dela;, diz a detenta Juliane de Souza Vinghote, de 30 anos, 5ª série, presa há 14 meses por tráfico. ;Li muito até os 14 anos. Depois, nunca mais li nada, me desinteressei por tudo. Aqui recomecei. Desde que a biblioteca foi inaugurada, já li oito livros;. Juliane prefere os de auto-ajuda. ;O que mudou na minha vida? Vejo a superação das pessoas. Aí, digo a mim mesma: ;eu também posso mudar;. Mudou a minha maneira de ver o mundo, agora posso acreditar num recomeço. Quem lê, muda até o pensamento;, responde a moça. O acervo da biblioteca conta hoje com cerca de 3 mil livros. As estantes estão cheias. Tudo é doação. E a procura é constante. Quem toma conta da biblioteca é a detenta Maria Luzeni Soares, mineira de 40 anos, presa por estelionato. Advogada criminal, Maria Luzeni viu sua vida mudar com a prisão. ;Nunca me imaginei do outro lado. E aqui dentro vi que sou igual a elas. Foi a maior lição da minha vida;, ela constata. Hora do banho de sol. Uma a uma elas descem para o pátio. Vencem cadeados, corredores, escadas. Pelo portão com grades, as presas escolhem os livros que gostariam de pegar emprestado. Algumas vão atrás de informação com Maria Luzeni, que ali virou uma espécie de psicóloga e bibliotecária da prisão. Há detentas que pedem para ela ler um pedaço de um poema. Um trecho de um romance. Às vezes, ficam na ponta dos pés para poder ver e ouvi-la melhor. ;Algumas se emocionam só em ouvir. Chegam a chorar;, conta, também comovida. Há ainda aquelas que voltam e contam a história que leram para a advogada presa. Querem compartilhar o novo mundo. Em um mês, 1.309 livros foram emprestados. Cada uma pode ficar até cinco dias com o mesmo livro. Informações sobre saída das obras e data de devolução, nome da usuária, tudo é registrado numa folha de papel por Maria Luzeni. Ali, detentas deixam de ser detentas. Viram apenas leitoras. Hoje, 400 mulheres estão trancafiadas. Oitenta por cento delas foram condenadas por tráfico. E a maioria é muito jovem, mal deixou a adolescência. Silêncio Os livros fizeram uma verdadeira revolução sem armas na Coméia. A poesia de Drummond encheu o lugar de esperança. Numa das celas, encostada na grade, uma moça de apenas 18 anos, sentada no chão frio, lê O vôo da gaivota. Foi a forma que encontrou para ser livre. A moça, depois que foi presa, não falou mais. Emudeceu. Prefere livros à fala. Usa a escrita para se comunicar. Tem sido acompanhada por uma psicóloga do presídio. E lê muito, todos os dias. Alessandra Rodrigues, de 21 anos, seis meses presa, virou fã de romances. ;Li cinco. Isso é o que me ajuda a viver aqui dentro;, ela diz. Andréia dos Santos, 22, encantou-se pela poesia. ;Ocupa a mente, distrai o pensamento. A gente nem sente que tá aqui dentro.; Maria Júnia Barbosa, 20, longos cabelos negros, cara de menina, presa por tráfico, aventurou-se pelos livros de suspense. Mas tem gostado mesmo é do romance. Está quase terminando A marca de uma lágrima. ;Eu me imagino dentro daquela história;, diz a moça que parou os estudos na 6ª série. E faz uma mea-culpa: ;Se eu tivesse estudado mais, talvez não tivesse entrado nisso;. O vôlei, o futebol e a queimada tiveram que dar um tempo. Agora, no banho de sol, as presas só desejam livros. ;Depois da biblioteca, eu só quero ler;, admite Simone Sales, 22, há 17 meses na prisão. Crime? Tráfico. Lucimar Araújo Lopes, 38, cabelos compridos e pintados de loiros, ensino médio completo, dois filhos adolescentes, é a campeã de leitura. Já leu pelo menos 30 livros. Adora temas espíritas e devora Paulo Coelho. ;Cada livro é uma viagem. Aqui dentro somos pássaros com asas mutiladas;, filosofa a moça, presa há 4 anos. E reflete sobre o poder da leitura: ;Quem lê fala melhor, escreve melhor e deixa a timidez de lado;. A vice-campeã de livros emprestados é Maria Lúcia dos Santos Silva, 32, cinco filhos, 14 meses presa. Leu 20 obras em um mês de funcionamento do novo espaço. ;Poesia e espiritismo são o que mais pego;, ela diz. E conta, com olhar perdido, a história do último livro que leu: ;Um pai rejeita o filho só porque ele nasceu sem braços. Chorei muito;. Depois de um momento de silêncio, Maria Lúcia diz, como se prometesse a ela mesma: ;Vou reconstruir meu lar, juntar minha família;. Trabalho de gente O começo dessa história fala do sonho de um agente penitenciário em fazer do ;ponto cego; uma biblioteca. Pois bem. Daniel Antônio Faria contou o desejo para Carmen Gamacho, 63, voluntária do Projeto Casa do Saber, de iniciativa privada, que tem como objetivo montar bibliotecas em todos os cantos do DF. Carmen foi ao presídio. Falou da vontade de ajudar. A diretora, Suzana de Pennafort Caldas, 44, recém-chegada à Coméia, aceitou o desafio. Convocou os servidores para abraçarem o projeto. Sinal verde. Carmen correu atrás de patrocinadores. Levou a presidente da Associação dos Bibliotecários do DF, Iza Antunes, 69 anos, 47 de profissão. Estava formada a corrente que mudaria a vida daquelas mulheres trancafiadas. A rede de Postos Gasol, patrocinadora do projeto, doou o mobiliário. A comunidade, livros. Brasília inteira participou. O que era apenas sonho foi, aos poucos, virando realidade. E finalmente chegou o dia da inauguração. Teve festa. Abriram-se as grades do presídio. Pelo menos para o pensamento. Suzana, a diretora visionária, logo constatou: ;Mudou o comportamento delas, a rotina. Até as brigas diminuíram;. Ivone Torres Lima, 58, chefe do Núcleo de Ensino, comemora: ;O presídio hoje é uma outra realidade;. Antes, apenas 70 presas estudavam. Agora, são 215. Carmen, cheia de emoção, fala em liberdade. ;Nem as grades as mantêm mais presas;. Iza, a bibliotecária, está surpresa: ;Confesso que jamais pensei que fosse fazer esse sucesso;. E as presas, protagonistas dessa história? Há um mês não fazem outra coisa: só viajam, cercadas de grades, cadeados, muros altos e homens armados em guaritas. É a viagem do pensamento, a melhor transformação. E, se transforma, é capaz de libertar. No Presídio Feminino da Coméia aconteceu, há um mês, uma grande revolução. Muros e grades caíram. Os agentes penitenciários, anestesiados, não tiveram tempo de usar armas para conter tamanha rebelião. E as sirenes nem tocaram. Sem Grades A Biblioteca Maria da Penha aceita doação de livros. Quem puder ajudar pode deixá-los em qualquer posto da Rede Gasol

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