postado em 29/10/2008 08:31
O Varjão tremeu. E não foi nenhum terremoto. O sacolejo naquele lugar tão perto e ao mesmo tempo tão longe do Lago Norte foi outro. O treme-treme foi gigantesco. Retumbante até. O presidente foi deposto. O quê? Sim, minha gente, não está escrito errado. A coisa ali esquentou. O presidente da Central de Reciclagem do Varjão (CRV) foi obrigado a deixar o cargo, menos de duas semanas depois de eleito. Primeiro decidiram licenciá-lo. Depois, mais radicalmente, depuseram-no. Passaram a régua e pediram a conta. As mulheres da central, subordinadas a ele, rebelaram-se. Botaram a boca no trombone, reuniram-se em nova assembléia, fizeram outra eleição e elegeram a nova presidente. A então vice do presidente é agora a todo-poderosa da CRV. A era, efêmera, do ex-carroceiro João Batista Côrtes ; de 48 anos, supletivo incompleto, mineiro de Patrocínio ; acabou. No lugar dele, a ex-diarista Edinei da Silva Santarém ; 33 anos, 4ª série primária, goiana de Formosa. Comovida, a nova presidenta prometeu, empolgadíssima: ;Vamos melhorar cada vez mais a garra, a disposição e a força dessas mulheres;. Dá-lhe!
Essa é a nova realidade da CRV. Composta hoje por 30 mulheres (já foram 40) e apenas seis homens, elas se organizaram e decidiram dar novo rumo à entidade. Com a eleição da nova presidente, ajudaram o novo regimento, elaborado pelo Sebrae (que durante dois meses treinou os recicladores), a ficar pronto. Definiram horário de entrada e saída. As regras para o uso do uniforme, pagamentos, advertências e as reuniões de diretoria. Na manhã de ontem, elas e eles estavam lá, no galpão abarrotado, de máscaras e luvas, separando os resíduos que chegaram do Lago Norte.
Veronita Meira, 36, seis filhos, do conselho fiscal e também recicladora, avalia que a saída do presidente foi oportuna. ;Sabe um ser humano que é o dono da verdade? É ele. Sempre sabia de tudo, ninguém sabia nada;, ela diz. Casada com o atual vice-presidente, Ivanildo Araújo Santana, 33, que fala pouco e miudinho, Veronita não deixa por menos: ;Ele (refere-se ao ex-presidente) se achava a bala que matou John Lennon;. A única vez que Ivanildo abriu a boca e levantou os olhos foi para concordar com a mulher: ;Sem o Batista, ficou melhor pra trabalhar em grupo. A gente não escuta mais a mandação dele em cima do povo;.
O fato é que o presidente caiu. Em um mês, a CRV viveu uma revolução. Há, entretanto, quem nada tem contra o ex-presidente. ;O que tem às vezes é muita fofoca. Onde muita mulher fica junto, já viu;, reflete a ex-doméstica Joana das Graças Pimentel, 53, maranhense de Cururupu. E reafirma: ;Eu mesma nunca tive nada contra o Batista;. Ivani Tavares, 25, que deixou o galpão depois da saída de Batista, emenda: ;Ali ficou muito desorganizado. Tá tendo resíduo demais, trabalho demais e o povo de lá não tá dando conta;. Ana Carla Rodrigues, de 21 anos, ex-doméstica e secretária da atual presidenta (também secretária de Batista, durante seu curto mandato), não tem papas na língua. Para ela, o ex agora é apenas ex. A fila andou. ;Mudar é preciso. Ele ficou duas semanas sem aparecer, sumiu. Tinha mesmo que mudar. Presidente tem que dar expediente. Tem que ser o exemplo;, ensina a ex-doméstica.
Dois turnos
Mas, afinal, onde começou a cisão entre o presidente deposto do Varjão e seus comandados? A atual presidenta explica: ;Ele queria que a gente dividisse a turma em dois turnos. Um das 7h às 13h e outro das 13h às 19h. As mulheres não concordaram. Caso algumas resolvessem trabalhar os dois turnos não dariam conta de cuidar da casa, dos filhos;. João Batista, que falou ao Correio na manhã de ontem, tem outra explicação: ;O acordo de dividir a equipe em dois turnos foi firmado em assembléia, numa sexta-feira. Eu ficaria pela manhã, com meu grupo. E a Edinei (atual presidenta), à tarde, com o restante. Seriam 20 recicladoras para cada um;.
Na segunda-feira seguinte, ainda segundo Batista, o acordo teria sido desfeito, sem mais nem menos. ;Cheguei lá e a Edinei tava com a turma dela. Não aceitei aquilo. Não tinha espaço para dois comandos;, ele avalia. E continua, convencido de que teria feito o melhor: ;Todo mundo ganharia, se dividisse o turno. Em vez das mulheres trabalharem doze horas por dia, trabalhariam apenas seis. Isso iria diminuir a falação, a conversaria e as fofocas no trabalho;. Sobre a acusação de que era o manda-chuva do pedaço, o ex-presidente nega categoricamente: ;Como mandão, se tudo era decidido em assembléia?;
Edinei não concorda: ;Até parece que era assim. Ele decidia tudo. Dizia que tinha mais experiência que todas nós;. Batista se defende: ;Eu reciclo desde meus 7 anos de idade. Tô com 48 anos. Portanto, há mais de 40 mexo com isso;. A atual presidenta do Varjão, timidamente, deixa escapar os novos rumos e humores da CRV: ;Eu acho que as mulheres estão mais animadas, mais empolgadas com o trabalho;. Dinorá José Borges, 40, fiscal e recicladora, confirma: ;Sou realista. Só falo o que é verdade. Essa semana deu um pouquinho mais de dinheiro. O Batista tem experiência, mas entende mais de reciclagem de ferro, papelão e sucata. Agora, a gente tem que reciclar tudo;.
Carteira assinada
Batista arrumou novo emprego. Na verdade, voltou a fazer jardinagem nas mansões do Lago Norte. Tem feito também poda e corte de árvores, nessas mesmas casas dessa gente abastada. E diz, comovido: ;Pelo menos voltei a ganhar pelo que faço. Na central, não tava dando quase nada. Numa semana tirei apenas R$ 30. Como uma pessoa pode sustentar uma família com isso? Um dia, minha mulher acordou e disse que não ia passar café naquela manhã porque a gente não tinha açúcar. Tava faltando dinheiro lá em casa;.
O presidente deposto acredita que a melhor solução foi, de fato, a saída da central. ;Não me encaixava mais ali;, ele constata. ;Se há possibilidade de alguma volta? Só se as coisas mudarem e os dois turnos voltarem;, decreta. Enquanto isso não acontece, Edinei comanda as moças do galpão. De jeito tímido ; difícil fazê-la sorrir para as fotos desta reportagem ;, ela trava todo dia a luta pela sobrevivência. Com a possibilidade de trabalhar perto de casa e sustentar os três filhos e o marido, que está numa cadeira de rodas depois de um acidente de carro, a presidenta abriu mão do trabalho de diarista, no Cruzeiro. Estava ali havia 10 anos. Com apoio da administração regional da cidade, fez o curso do Sebrae, aprendeu sobre reciclagem e virou, em votação, a vice-presidente, na chapa de Batista. Agora, com a revolução de suas comandadas, assumiu o mais alto posto da CRV.
Jura, e jura de pé juntinho, que o cargo não lhe subirá à cabeça. ;Quero só trabalhar e sustentar minha família;, ela garante. E revela suas prioridades com o mandato, que vale por dois anos: ;Todas nós só queremos aumentar a produção, fazer o negócio crescer, vender mais e ganhar mais por isso. E, quem sabe, ter nossa carteira de trabalho assinada;. E conclama: ;A gente precisa de recicladora. Mas só tem uma exigência: que seja moradora no Varjão;. Sobre o presidente deposto, Edinei aprendeu a ser política, extremamente política ; aliás como todos: ;Ele não agüentou a pressão;.
E o Varjão continua tremendo. Fervendo. Mulheres se juntaram, afastaram um líder, elegeram uma presidenta e sonham com novos tempos. De máscaras e luvas, se embrenham num galpão atolado de resíduo. É tanta coisa que elas somem no meio deles. Vão reciclar o que o povo do Lago Norte, alguns nem enxergam aquela gente do Varjão, não quer mais. O que não lhes faz mais falta. Essa história, antes de qualquer coisa, é feita de muita coragem. E de rebeldia também. Da boa rebeldia. Essa mulherada do Varjão não é fácil!