postado em 02/11/2008 10:21
A história era para ser contada assim: uma escola pública da zona rural do DF ganha, por meio da iniciativa privada e ajuda da comunidade, sua primeira biblioteca. Em três ou quatro parágrafos, talvez, o assunto poderia ter se esgotado. Bibliotecas são inauguradas com certa freqüência, em qualquer lugar. Mas vamos lá. Mesmo com três ou quatro parágrafos era necessário ir ao local. Ver a biblioteca. E conhecer aquela realidade. São 10h, sexta-feira, calor de 32;C. O carro segue em direção a um lugar longe, muito longe. Teríamos 85km para vencer. Nove deles seriam em estrada de terra. Precisávamos chegar. De longe, a paisagem comovente. Uma ou outra casinha, chapadões, campos cheios de plantação, uma gente simples, de andar vagaroso, um silêncio que berra.Era ali. Chegamos à Zona Rural do Cariru, caminho de Unaí (MG). Logo, se vê a escolinha, com portas e janelas azuis. Paredes pintadas de verde-água. Ao lado da escola, a capelinha de Santo Antônio. Sob a sombra de árvore, um cavalo à espera do seu dono. E novamente o silêncio, quebrado apenas pelas vozes das crianças e das professoras. A Escola Classe Cariru estava à nossa frente. Só nos restava entrar.
Três salas de aula, 58 alunos ; de 6 a 11 anos. Numa das salas, uma professora contava histórias aos alunos, sentados no chão. A biblioteca, inaugurada há uma semana, cheia de mesinhas e cadeiras. São 4 mil livros, doados pela comunidade do DF. Naquele espaço, antes uma sala de aula, meninas e meninos descobrem um novo mundo. Ali ainda não chegou computador, tampouco internet. O único telefone do lugarejo ; onde vivem 350 famílias, cerca de 1,5 mil pessoas ; é um orelhão rural, pertinho da escola.
Na parede da biblioteca, uma frase foi escrita em letras azuis: ;Os livros são faróis erguidos no imenso oceano do tempo;, de Edwin Whippe. Pouco a pouco, as crianças começam a entender o sentido da mensagem. Gerson André, de 8 anos, encantou-se com o mundo que bateu à porta do seu mundinho onde cavalos esperam, à sombra, pelo dono. ;Gosto de ler histórias de contos de fadas e livros de amor;, diz com os olhos acesos. Taianá Pereira, 9, não dispensa poesias. Revelou-se escritora. ;Adoro escrever fábulas.; Larissa Stefane Matias descobriu a literatura infantil. ;Fico atrás das lendas. É como se eu viajasse, saísse daqui;, compara a menina de 10 anos.
Sob a sombra de uma goiabeira, Gerson e Tainá viajam com os novos livros: ;Parece que a poesia é real e eu entro nela;, reflete a menininha. Na inauguração da biblioteca, sem texto ensaiado e sem que ninguém mandasse, Gerson roubou a cena. Com os olhinhos marejados, agradeceu pelo novo espaço e falou como os livros mudariam a sua vida e a dos seus colegas. Carmen Gramacho, 63, coordenadora do projeto Casa do Saber, não conteve as lágrimas.
Mundo diferente
A Biblioteca da Família não será apenas dos alunos, mas de toda a comunidade. A diretora Edilene Ferreira de Oliveira, de 42 anos, ri como se tivesse ganhado o melhor presente da vida. Havia 11 anos ela lutava por um espaço daquele. E nem o cansaço diário de vencer 84km para ir e voltar do trabalho (ela mora em Planaltina), tirou-lhe a esperança. ;Foi nosso maior ganho, nossa conquista;, ela exulta. A vice-diretora, Semíramis de Lima, 40, emenda: ;Depois das crianças, é nosso maior patrimônio;. O vigilante Valdinei dos Santos, 24, voltou a ler: ;Tô aprendendo coisas que não sabia;. A merendeira Leonor Neres Viana, de 46 anos e há 26 na escola, comemora: ;Meus dois filhos estudaram aqui. Antes, tudo era muito difícil. Não tinha como nem onde pesquisar. Agora, essas crianças têm o mundo perto delas;.
A professora Cláudia Fernandes Wagner, 40, a ;poeta das horas vagas;, diz, exultante: ;Só a leitura poderá abrir portas para essas crianças. E, antes da biblioteca, elas não teriam nenhuma oportunidade de chegar a uma;, constata. Sulamita Severina de Oliveira, 32, colega de Cláudia, endossa: ;Será a chance dessas crianças de ter um contato com outra realidade;. E, emocionada, faz elogios à escola onde começou a trabalhar no início deste ano: ;É um lugar diferenciado em todos os sentidos: pessoal e profissional. As crianças daqui têm outras prioridades;. Sulamita viaja 32km para chegar à escola. E a biblioteca, de fato, mudou a rotina do povoado. Para Leonilson Andrade da Silva, 42, presidente da Associação Comunitária de Cariru: ;A escola é o nosso pulmão. O lugar onde todo mundo respeita;.
Poesia e arte
Minutos antes de o sino tocar, os alunos preparam uma surpresa. Lêem, como gente grande, uma poesia da professora Cláudia. Sentadinhos no chão, um a um levanta e diz parte do texto. Os outros, com os olhinhos arregalados, escutam. Depois, há um pequeno número musical, representado por duas meninas. Uma delas, ex-aluna, que nunca deixou o vínculo com a escola.
Hora do almoço. Leonor, a merendeira-patrimônio daquele lugar, preparou baião-de-dois, com pedaços de carne, salada de beterrada e cenoura, colhidas da hortinha da escola havia meia hora. Em fila, as crianças recebem seus pratos. Leonor se orgulha de seus quitutes. Uns pensam nos livros que levarão para ler no fim de semana. Outros ainda viajam nas historinhas que acabaram de ler. E correm pela estrada de terra batida em busca de um mundo que se revelou como sonho.
Meio-dia e meia. Depois do almoço, hora de voltar para casa. O cavalo à sombra da árvore espera pelo seu dono. O miudinho Ernesto Filho, 9 anos, cearense recém-chegado à escola, filho de um lavrador e uma dona-de-casa, sai feliz, de mochila nas costas. É o primeiro que chega à escola, antes das 7h. O último que vai embora. Desamarra seu cavalo (que ele batizou de Rai) e monta. Cavalga por meia hora até chegar em casa. Antes de partir, ele confessa ao repórter: ;Tenho vontade de ler pra ser doutor;. Doutor de quê? ;Não sei, mas um doutor pra ajudar as pessoas e deixar o mundo melhor;.
Ernesto e Rai partem. O menino acena. E os dois somem no cerradão. Amanhã, os dois estarão lá novamente. Rai, à sombra de uma árvore, à espera do seu dono. E Ernesto irá descobrir personagens, mundos, histórias, sonhos, viagens e possibilidades. Essa história é muito mais do que a inauguração de uma biblioteca. É a certeza de que em qualquer lugar a vida pode sempre ser reinventada.