Cidades

Fundador da capital completa 80 anos nesta quarta-feira

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postado em 05/11/2008 08:39
Ele tem 1,58m, usa uma fita do Senhor do Bonfim no pulso direito e anda ligeirinho. Esse homem que se agiganta ao falar mais de Brasília do que dele completa hoje 80 anos. Ao olhar para trás, os olhos se encharcam de emoção e ele diz, como se pudesse parar o tempo: ;Faria tudo de novo, tudinho. Talvez melhor;. São 15h50. Estamos na 203 Sul, num apartamento espaçoso, piso de tábua corrida gasta e paredes claras, com marcas de tinta antiga. Nelas, quadros, muitos quadros. Em um deles, numa moldura discreta, uma foto da atriz Fernanda Montenegro, em cena no teatro. De próprio punho, ela escreveu: ;Ao meu amigo querido, com um grande abraço;. E a data: maio de 1973. Depois, esbarra-se com Che Guevara. São três quadros do líder da revolução cubana. Andando um pouquinho mais, encontra-se Juscelino Kubitschek e um Oscar Niemeyer maduro, mas ainda moço. Mais abaixo, uma declaração do arquiteto à terra que recebeu seus palácios e monumentos: ;Espero que Brasília seja uma cidade de homens felizes. Homens que sintam a vida e toda a sua plenitude, em toda a fragilidade. Homens que compreendem o valor das coisas simples e puras ; um gesto, uma palavra de afeto e solidariedade;. Sobre a mesa, papéis, livros, velhos documentos. Na vitrola que ainda funciona, discos em vinil. O homem de 80 anos escuta Dorival Caymmi, Cartola, bossa nova e música clássica. Estamos na casa de Walter Albuquerque Mello, um baianíssimo soteropolitano (nascido em Salvador) de alma brasiliense. O homem que se dedicou à cultura e ao patrimônio cultural da capital como se defendesse a ele próprio. Quarenta e oito anos depois, com os olhos ainda ávidos, ele só tem uma certeza: ;Tudo valeu a pena. Minha vida só começou a ter sentido no dia que cheguei a Brasília;. O menino Walter nasceu na capital baiana. Filho de um funcionário público e uma dona-de-casa, mudou-se ainda pequeno para Ilhéus. Família grande, quatro mulheres e dois homens, nada foi fácil. Ali, Walter estudou. Fez o primário e o ginásio. E foi ali que conheceu o cinema. Paixão imediata. Menino homem, voltou a Salvador. Formou-se em ciências sociais. E de lá partiu para o Rio de Janeiro. Walter queria conhecer um lugar que nem ele sabia exatamente qual era. E não se demorou por muito tempo na então capital. Um amigo jornalista, Narceu de Almeida, com quem dividia apartamento no charmoso bairro de Santa Teresa, viria morar na futura capital. Convidou-o também para desbravar o cerrado. O projeto, que era da família de Narceu, seria inaugurar a primeira livraria e discoteca (loja de discos) na terra de JK. Na última hora, o jornalista recebeu um convite irrecusável. Seria correspondente da revista Manchete, em Paris. Narceu partiu para a cidade-luz. Walter veio desbravar o cerrado desconhecido. Era agosto de 1960. ;Não tinha nada. Só barro e terra vermelha. Senti uma coisa muito especial naquele dia;, ele lembra, distante daquela sala. A livraria foi inaugurada, na W3 Sul. Walter trabalhou ali durante um ano. Depois, sua vida mudaria definitivamente. Festival de cinema Em 1962, o baiano cinéfilo assumiu a Fundação Cultural. Virou assessor para as áreas de cinema e artes plásticas. O homem que gostava de arte passou a viver dela. Em 1965, sob a coordenação de Paulo Emílio Salles Gomes, ajudou a montar a Primeira Semana do Cinema Brasileiro, repetida nos dois anos seguintes. Era o início da semente do que nasceria depois: o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, sucesso de público e crítica, referência nacional. Dezessete anos se passaram na Fundação Cultural. Era chamado, pelo próprio Oscar Niemeyer, de ;Walter Cultura;. Um dia, mais um convite. Trabalharia na Divisão do Patrimônio Histórico e Artístico, da Secretaria de Educação e Cultura. Viraria diretor da área. Indeciso, perguntou a uma amiga o que faria. Ela jogou as moedas do i ching. Não havia dúvida. Ele precisaria ir. E lá se foi Walter. Trabalhou como nunca. Coordenou projetos de tombamentos ; da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima, na 307 Sul, à pedra fundamental da capital, em Planaltina. Mas Walter descobriu que não havia, até então, nenhum órgão voltado à preservação do patrimônio documental de Brasília. A história escrita da capital, sua construção, sua essência, lembranças, tudo correria o risco de virar lixo. Esquecimento e pó. Em 14 de março de 1985, foi criado o Arquivo Público do DF. O expediente era numa sala modesta do Teatro Nacional, depois, mudou-se para a sede da Novacap. O baiano cinéfilo ficou numa felicidade tamanha. E tinha um novo desafio a caminho:juntar a história de Brasília. ;Aquilo não podia ser um arquivo morto. Era preciso tornar a instituição útil;, ele constata. E Walter trabalhou mais do que nunca. Com uma equipe que somava esforços, juntou, colou, resgatou. Fez Brasília renascer em papéis, fotos, documentos e raridades. Mas o baiano completou 70 anos. Aposentou-se, em 1988. Ficar em casa? Nunca. A convite do governador Cristovam (;e olha que nem era petista;), foi chamado para voltar ao antigo cargo. Ele não pensou metade de uma vez. E foi fazer o que mais lhe dava prazer: trabalhar. Com o fim do governo Cristovam, na gestão Roriz, Walter foi desligado do Arquivo Público. Foram oito anos longe do seu ofício. ;Cuidei dos meus filhos, li, fui ao cinema, resgatei outras coisas;, ele conta. O governo passou. E os homens passaram. Há um ano, recebeu um convite que novamente não pôde recusar. O atual superintendente da instituição, Luiz Ribeiro de Mendonça, convidou-o para ser assessor do lugar que conhece cada palmo. Todo dia está lá, dando expediente, com entusiasmo juvenil. Extasia-se com a história que sabe de cor. E reclama apenas de uma coisa: ;Sou um pioneiro tardio. Cheguei aqui em 1960. Devia ter vindo antes;. Filhos e amores Walter amou três mulheres. Em cada uma, um filho e uma história: Daniel, 34, Camila, 31, e Joaquim Pedro, com 20 anos, estudante de relações internacionais. ;O nome dele foi uma homenagem ao cineasta Joaquim Pedro de Andrade, diretor de Macunaíma, (1963), o criador do Cinema Novo;, conta, orgulhosíssimo. E faz uma declaração apaixonada ao filho caçula, com quem mora na 203 Sul: ;Ele me revitalizou. Quero viver mais pra dar condições ao Joaquim Pedro pra que ele siga seu caminho. É ainda a minha missão;. E quando se pergunta sobre o seu estado civil, ele não hesita: ;Sou solteiríssimo;. Sobre Brasília, uma certeza: ;Essa cidade me permitiu que eu me realizasse como ser humano e deu sentido a todos os meus sonhos na área de cultura;. E uma preocupação: ;Todo dia me pergunto: ;O que fizeram com essa cidade?; O projeto original de Lucio Costa está sendo desvirtuado;. Nas paredes da sala do baiano que se deixou acolher por Brasília, os títulos e as condecorações: cidadão honorário; diploma do mérito cultural, no grau de comendador. Mas há um de que ele mais se orgulha. Levanta-se ligeirinho e vai buscar. É uma charge dele, feita pelo ilustrador Jô Oliveira. Atrás, a declaração de amizade escrita pelos colegas do Arquivo Público, no dia da sua aposentadoria. Numa delas, a mensagem: ;O sentimento de amor ao plantar sementes pela preservação da memória de Brasília, que, com todo trabalho calcado em ideais, resultou em um belo fruto;. Sem dirigir mais, Walter anda de ônibus, de metrô e a pé. Encanta-se com mundos e pessoas novas que descobre nas andanças. ;Gosto de ir ao cinema no Cine Academia. O Joaquim Pedro me deixa e me pega;, ele diz. ;Se eu tenho saudades? Muitas. São muitas lembranças...; E a saúde? Ele responde, animado: ;Nunca fumei e só bebi socialmente. Minha geriatra me disse: ;Você é um vitorioso. Tem vitalidade, alegria e disposição de viver;. Na semana passada fui à Bahia e comi muito caruru. Acho até que engordei um pouquinho;. No fim da entrevista, o homem que ajudou a história da capital a não se esfacelar faz uma confissão emocionada: ;Tenho a sensação que de fato cumpri minha missão. Com Brasília e comigo mesmo;. Hoje, o baiano que saiu de Salvador sem saber exatamente onde ia parar e como seria sua vida, completa 80 anos. Sem imaginar, ele, que caçou e juntou os pedaços da história da capital, tornou-se parte viva dela. Baianamente, o miudinho não deixa por menos:;Não nasci há 80 anos. Como todo bom baiano, eu estreei;. E a estréia foi gigantesca. Monumental.

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