Cidades

Violência urbana deixa pelo menos quatro famílias do DF sem pai ou mãe

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postado em 09/11/2008 08:30
O menino de 8 anos pergunta pelo pai. Sente falta do companheiro de futebol, do homem que o abraçava e cuidava dele como ninguém. A sensação é de perda. E vira revolta. O irmãozinho mais novo, de 2 anos, também tem saudade. Mas não entende bem o porquê. Por isso, o sumiço daquele colo repleto de segurança e conforto o faz falar e falar. Como consolo, a mãe diz que o ;papai foi para o céu;. ;É começar do zero. É recomeçar uma nova vida, mas com dois filhos para criar. O meu marido era o pai e a mãe deles, enquanto eu trabalhava;, lamentou a ex-auxiliar de dentista Meire da Silva, 34 anos. Os dois filhos da hoje dona-de-casa perderam o pai em outubro, durante um assalto a ônibus na 214 Norte. Sofrem a mesma dor de pelo menos quatro famílias do Distrito Federal que ficaram, no mês das crianças, sem a mãe, o pai ou os dois por conta da violência urbana. Em alguns casos, o desamparo obrigou o Estado a intervir e a prestar assistência. Em outros, a mãe acumulou o papel de chefe da família, o pai se transformou em mãe e os avós assumiram a responsabilidade na criação e educação dos netos. A mãe Meire, por exemplo, tentará preencher os espaços deixados pelo cobrador de ônibus Gaspar Joaquim dos Santos Silva, 38. Apenas desconfia, não tem certeza da dificuldade da tarefa. Um dos maiores desafios será cuidar do bem-estar dos filhos. Principalmente depois que a tragédia mudou a rotina familiar. O casal e os dois meninos sobreviviam com três rendas. O marido ganhava dinheiro como cobrador e aproveitava as folgas de fim de semana para fazer bicos como garçom. Meire trabalhava como auxiliar em um consultório odontológico. Emprego A morte de Gaspar a obrigou a deixar o emprego de seis anos. Tomou a decisão por causa dos filhos. O mais velho freqüenta a escola. Menos mal. Mas o caçula passava o dia em companhia do pai, que batia ponto só no fim da tarde. Por enquanto, a mãe vive das economias da família e conta com o suporte emocional de parentes e amigos. A mãe dela a acompanhou até o fim desta semana. ;Tem sido tudo muito difícil. Às vezes, não sei nem o que dizer a eles;, disse Meire, que, como viúva, tem direito a receber indenização da empresa onde o marido trabalhava. Um mês após o crime, ocorrido no dia 9 de outubro, a dona-de-casa também se preocupa com a investigação sobre o latrocínio (roubo seguido de morte). ;Tenho fé em Deus que vão pegar o responsável por tudo isso. Espero que as testemunhas apareçam e ajudem a polícia a identificá-lo;, pediu. O delegado-chefe da 2ª DP (Asa Norte), Antônio José Romeiro, disse que aguarda a conclusão de dois laudos de balística para tentar apontar o assassino de Gaspar. São análises de tiros dados por ladrões durante assaltos recentes. ;Se confrontarem as marcas, pegamos o autor da morte do cobrador;, avisou. Outras duas crianças brasilienses também crescerão sem a presença do pai. No caso delas, não tiveram tempo nem de se acostumar com a figura paterna. Quando voltou, após um ano longe da família e quatro de separação, o ex-cobrador de lotação Antônio Marcelo, 33 anos, tentou se reaproximar delas. A distância não importou para o garoto de 5 anos, de feições e jeito parecidos com os do pai. Antônio chegou cheio de boas intenções e prometeu ao mais novo que logo passeariam juntos. Já a filha de 7 não revelou a mesma empolgação. Disse até que não o amava. Mas no fundo sentia falta do pai. Sem resposta No dia seguinte à visita, o menino saiu à rua para contar a novidade aos amigos. Perguntava sempre à avó Maria do Livramento de Assis Rodrigues, 65, quando o pai o buscaria. Ela, que cuida das crianças durante a semana, no Guará, enquanto a mãe, Diana de Assis Rodrigues, 24, trabalha, não sabia a resposta. E acabou sem nenhuma depois da tragédia. Antônio morreu na mesma semana em que reviu os pequenos. Levou várias pedradas em frente a um bar, em Ceilândia, em 21 de outubro. Passou sete dias em coma, mas não resistiu. Diana contou aos filhos, sem jeito, que ele ;não iria mais voltar;. Para a mãe e a avó das crianças, o fim da vida de Antônio também terminou com a esperança de as coisas melhorarem. ;Ele disse que estava procurando emprego para ajudar os meninos. Eu não esperava muito. Só me preocupo com os estudos das crianças e achei que ele poderia ajudar;, disse Diana. Após a separação, a mãe virou a chefe da família. O marido não mandava dinheiro. Ficou preso por um tempo e depois até mudou de cidade. Em Santa Maria, apenas bebê foi poupado A perda dos pais faz com que o órfão receba a atenção de órgãos públicos e judiciários. A Vara da Infância e da Juventude (VIJ), a Promotoria de Defesa da Criança e da Juventude, duas delegacias especializadas e o Conselho Tutelar têm obrigação de garantir o bem-estar dele. Na prática, devem aplicar as medidas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). ;Se perde o pai e a mãe, a responsabilidade pode ficar com avós, tios, amigos e até vizinhos, desde que seja comprovada a capacidade para criá-lo;, afirmou a promotora Luisa de Marillac, da Defesa da Infância e da Juventude. A avaliação é feita pelo Conselho Tutelar da cidade onde mora a criança. O órgão, autônomo, mas vinculado à Secretaria de Justiça do DF, tem como prioridade deixar o menor de idade sob os cuidados de quem se manifestou pela guarda. Geralmente, avós ou tios. Inicia-se, assim, uma investigação sobre a vida familiar. A intenção é identificar se existem condições favoráveis para um desenvolvimento saudável. Se o ambiente agrada, encaminha se a regularização da tutela. Tudo tem de ser feito judicialmente, já que apenas pai e mãe têm a guarda natural. O órfão em situação de risco só fica em abrigos públicos em último caso. ;É a última solução e a menos indicada. Só acontece quando não existe ninguém capaz de cuidar de quem ficou desamparado. Infelizmente, isso não ocorre tão raramente no DF;, disse o coordenador de Apoio Técnico dos Conselhos Tutelares do DF, Maurício Albernaz. A coordenação não tem números de crianças e adolescentes em perigo ou que vivem em albergues do governo. Mas os conselhos tutelares de Brasília e Ceilândia recebem uma média de 50 a 65 denúncias por dia de desrespeito ao ECA. Com os avós Em outubro, mês das crianças, o DF registrou um caso de uma menina de 1 ano e meio que ficou sem os pais de uma só vez. Ainda presenciou a execução deles em Santa Maria. O crime ocorreu dia 20. O pai, Bruno Leonardo Alves de Souza, 20, e a mãe, Camila de Oliveira, 24, morreram baleados em casa, na QR 201. Ele levou oito tiros. Ela, três. Os assassinos pouparam o bebê, apesar da violência a que ele acabou obrigado a assistir. Os primeiros policiais a chegarem ao local a encontraram a criança chorando e apontando para o corpo da mãe. Agentes da 33ª Delegacia de Polícia (Santa Maria) trabalham com a hipótese de acerto de contas. Além do histórico de violência, Bruno sofreu uma tentativa de homicídio semanas antes. Certeza, nesse caso, é quanto à ausência definitiva dos pais da menina. O desamparo só não será maior porque os avós maternos se comprometeram a cuidar da neta, que nos primeiros meses de vida morou na casa deles. ;Ela vai ficar com a gente, que é a melhor coisa. Só não me conformo por que mataram minha filha. Não precisava disso;, reclamou o avô da criança, que preferiu não se identificar. Para ficar com ela em definitivo, os avós precisarão de paciência para enfrentar a burocracia. Devem encaminhar papéis para pleitear autorização judicial e obter a guarda. Por enquanto, têm em mãos termo redigido pelo Conselho Tutelar de Santa Maria. Um texto resume a responsabilidade e a capacidade dos novos responsáveis. Cita até a experiência que o bebê teve com os avós. Para o avô, que assinou o documento, a convivência funcionará como um recomeço de vida para a neta. Ele terá o papel de pai. A avó, o de mãe. (GG)

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