postado em 14/11/2008 08:29
;Onde é que tu estavas, menino?
; perguntou a mãe, atarantadinha.
;No boi, minha mãe ; respondeu, sem pestanejar, o menino magricela de 6 anos.
Alexandrina, que era chamada por todos de Sinhá, retrucou: ;E por que não pediste pra ir, por que colocaste um pilão na rede para me enganar que estavas dormindo?;. Ele devolveu: ;Por que a senhora não ia deixar eu ir pro boi;. Uma tia, irmã da mãe, ouviu a conversa e interveio: ;Não bate, Sinhá! O menino falou a verdade;.
A mãe nunca mais ralhou com o filho por causa do boi. E ele nunca mais colocou o pilão na rede. Essa conversa faz tempo. Aconteceu há 82 anos, muito longe daqui, num lugar chamado Castanho Claro, povoado de São Vicente Ferrer, na Baixada Maranhense. Mesmo que você nunca tenha ouvido falar em Castanho Claro ou em São Vicente Ferrer, tampouco na Baixada Maranhense, muito provavelmente já ouviu falar em Teodoro Freire, o homem que trouxe o bumba-meu-boi para o cerrado e fez nascer aqui a história de Catirina. Prenha de desejo, a espevitada mulata só queria comer a língua do boi. E por isso convenceu Nego Chico, o pai da criança, a matar o animal. Empregado do sinhozinho, dono da fazenda, Nego Chico penou com Catirina. O pobre boi também.
Domingo passado, o menino que colocava pilão na rede e fugia para ver o boi dançar no meio do terreiro, completou 88 anos. Está inteiro, lúcido, ativo, faz planos e pensa no futuro. De presente de aniversário de uma turma de amigos da Secretaria de Cultura que se cotizou, ele ganhou uma passagem para o Rio de Janeiro. Voltará ao Maracanã, domingo que vem, para assistir ao seu Flamengo jogar contra o Palmeiras. Faz 43 anos que ele ali não pisa. ;A última vez foi em 22 de agosto de 1965, na Taça Guanabara. O Flamengo ia jogar contra o Botafogo. Perdemos de 1 a 0. Fiquei com muita raiva. Adoeci. Quase morri naquele dia. Disse que nunca mais voltaria àquele lugar;, lembra. Vai voltar, quatro décadas depois.
Teodoro, mais conhecido como seu Teodoro, é uma figura ímpar. Não conhecê-lo ; e não saborear a inteligência do homem que aprendeu na vida a arte de ser culto sem estudos ; é crime de lesa-pátria. Seu Teodoro é tão importante para Brasília que, sem ele, jamais aqui se veria o boi dançar. E não se saberia da cultura genuína maranhense que, mesmo longe da sua terra, tornou-se patrimônio cultural do Distrito Federal. O boi do mestre é a história viva da capital que aceitou a diversidade para poder ter o que contar e depois escrever sua própria história.
Tempo, um detalhe
Uma casa modesta em Sobradinho, gente acolhedora, de sotaque bom e sonoro ; eles usam o tu, segunda pessoa do singular, com o verbo correto. É lá, nessa casa sempre cheia, que mora o dono do boi. É quarta-feira, tarde de chuva pesada, céu encoberto por uma nuvem preta. O homem nos espera de chapéu, calça de tecido cinza, camisa azul, um casaco creme por cima e sapatos pretos com meia social. Está sorridente. ;Tenho 88 anos e três dias de vida. É muito ano, né?;, ele pergunta e logo responde: ;Mas eu ainda vou viver muito. Vou passar dos 100. A morte só me procura porque é saliente, não tem vergonha. Eu mesmo nunca procurei por ela, de jeito nenhum;.
A conversa, regada a boi, luta, sonho, vida e realização, já se anuncia boa demais. E ele começa a contar sua história como se contasse um conto. E fala de uma terra, quase no meio norte do país, que ainda o faz suspirar de emoção e saudade. Essa terra o torna menino e o leva a acreditar que o tempo é apenas um detalhe. ;Daqui a mais um ou um ano e meio, vou voltar pro Maranhão. É o tempo que preparo meu filho caçula pra assumir o boi. Aí, sim, vou poder ir embora;, ele diz.
Foi lá, em Castanho Claro, que não existe no mapa, nos confins do Maranhão, que nasceu de parteira o menino Teodoro. Era 9 de novembro de 1920. Teodoro era o segundo e último filho de Sinhá e de Melquíades, o dono da quitandinha. E lá o menino magricela cresceu, colocando pilão na rede para enganar a mãe e fugir para ouvir as toadas do bumba-meu-boi .
Aos 12 anos, em 1933, Melquíades decidiu que Teodoro moraria na capital, São Luís. Sinhá chorou, mas teve que concordar. E lá se foi o menino. Ia viver com uma prima mais velha e trabalharia no botequim. ;Não me adaptei. Era menino de interior, achei estranho aquilo;, ele conta. Mas logo arrumou outro emprego. Foi trabalhar na quitanda de um português, no centro da cidade. ;Quando ele saía pra fazer compra na Praia Grande, eu ficava tomando de conta da quitanda. Fiquei lá até 1936.;
Depois do trabalho, à noite, Teodoro deveria ir à escola. Deveria. Nunca conseguiu chegar. ;Eu ia mesmo era atrás do bumba-meu-boi na Madre Deus (bairro boêmio da capital, tradicional reduto de todas as manifestações culturais e folclóricas da ilha). Chorava quando ouvia as toadas. Aquilo era maior do que eu, me arrepiava dos pés à cabeça;, ele diz, visivelmente comovido. ;Aprendi o ABC só até os 11 anos. O boi era sagrado pra mim.;
Cidade Maravilhosa
Aos 33 anos, em 17 de abril de 1953 (ele sabe todas as datas de cor), Teodoro deixou São Luís. Resolveu ganhar a vida na capital do Brasil, ainda o Rio de Janeiro. Pegou um avião (a passagem foi doada por um médico amigo) e partiu. ;Saí às cinco horas da manhã e cheguei no Rio às cinco da tarde. Achei a cidade linda, só não era mais linda do que São Luís;, fala, num acesso de bairrismo. Primeiro endereço: uma pensão perto do Aeroporto Santos Dumont. E o primeiro emprego: faxineiro num prédio comercial, no centro da cidade. Mas a saudade do boi o corroía. ;Não tinha nada que lembrasse meu Maranhão no Rio. Aquilo me doía tanto...; À procura de sua história, em Bonsucesso, subúrbio carioca, Teodoro criou um boi. Juntou uns maranhenses desgarrados e esquentaram as zabumbas e as matracas (dois pedaços de madeira que produzem um som contagiante). Nasceram as toadas. E o boi de Teodoro, com 46 brincantes, desembestou-se pelo Rio de Janeiro inteiro.
Numa noite dessas, na Praia Vermelha, na Urca, onde o boi tinha ido dançar, Teodoro viu sua segunda mulher, que assistia à apresentação. Era 1956, governo de Juscelino. Maria José, então com 25 anos, era uma maranhense que vivia no Rio também à procura das lembranças de sua terra. ;Conheci esse homem no boi;, diz hoje, às gargalhadas, aos 77 anos. Tempos depois, de toada em toada, casaram-se. Maria pegou 18 barrigas ; 15 vingaram, nove estão vivos. E todos trabalham no boi.
Em 1960, a convite de um deputado maranhense (a capital havia se transferido para o Planalto Central), Teodoro chegou à terra de JK. Gostou do que viu. ;Tinha tatu na estrada, siriema andando na rua. deu vontade de ficar;, lembra. No ano seguinte, no primeiro aniversário da capital, o boi de Teodoro dançou na Rodoviária do Plano Piloto. E encantou aquela gente de todos os lugares.
Aqui, ele virou contínuo da Universidade de Brasília (UnB), ainda no tempo do memorável Darcy Ribeiro. Depois, recepcionista e por último confeccionador de instrumentos musicais. Enquanto isso, o boi crescia em Sobradinho. Nasceu o Centro de Tradições Populares, um barracão onde a história foi eternizada. Tornou-se presidente do lugar. O boi maranhense virou, tempos depois, Patrimônio Imaterial do Distrito Federal. E Teodoro recebeu, em 1986, o título de cidadão honorário.
Em 2006, veio o título de comendador cultural, entregue pelo então ministro da Cultura, Gilberto Gil. Muito antes, ainda em 1991, contrariadíssimo, Teodoro teve que se aposentar da UnB, aos 70 anos. Mas nunca se aquietou. De ônibus, todos os dias vai ao lugar onde tudo começou. Assim é Teodoro, o morador mais conhecido e um dos mais respeitados de Sobradinho. O mestre, a referência cultural da cidade e do DF. O dono do boi, o homem que resgatou o folclore do Maranhão e o fez dançar no cerrado. Ao longo da vida, esse homem de 88 anos acumulou paixões. Na sala de sua casa, há duas bandeira enormes decorando a parede da sala modesta: uma do Maranhão, outra do Flamengo. ;Não posso viver sem meu boi, meu Maranhão, Maria José, a Mangueira e o Flamengo;, admite. E é o seu Flamengo que ele verá domingo, em pleno Maraca, depois de 43 anos sem ali pisar.
Planos? ;Voltar pra Castanho Claro, de onde um dia saí, pescar no igarapé e levar o peixe pra Maria José preparar. Depois, ouvir o jogo do Flamengo pelo radinho de pilha e deitar na rede, escutando nas lembranças as toadas do boi, ao som dos pandeirões e das matracas. É tudo que quero na minha vida. Não é querer muito, é?; Não, Teodoro, a vida e o tempo lhe reservaram todos os direitos.