Cidades

Circular da linha 82 oferece biblioteca itinerante à população

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postado em 16/11/2008 08:54
Certo dia, sentada na sua cadeira com vista para a janela, uma passageira intrigou-se com a cena a que assistira. Em vez de olhar para a paisagem, fixou o olhar naquele homem. Viu que ele folheava um livro. Conseguiu ver o autor. Era Jorge Amado. Entre um sossego e outro, enquanto não chegava passageiro, ele passava uma página. Ela percebeu que, além daquela viagem, havia outra, que andava longe daquele ônibus. A mulher se encasquetou. Antes de descer, foi até o moço e perguntou: ;Você gosta de ler, cobrador?; Ele devolveu, envergonhado: ;Gosto, sim, senhora!”

Ela desceu e desapareceu no meio da multidão. Uma semana depois, embarcou novamente naquele ônibus. E trouxe três livros para o cobrador. Eram obras de literatura brasileira. De tanta emoção, o moço engasgou. Levou para casa seu mais novo acervo. Devorou-os. Enquanto lia suas histórias, pensou: ;Por que não compartilhar isso com outras pessoas?; E ele teve uma grande idéia: levaria os livros para o ônibus e assim incentivaria outras pessoas a ler também. Antes, muito antes, ele pensou em montar uma biblioteca em Sobradinho II, onde mora. Seria um espaço de leitura e pesquisa para quem quisesse chegar. Desistiu pela completa falta de apoio e nenhuma condição financeira.

Sem ter uma biblioteca fixa, resolveu que ela seria itinerante. Juntou as 10 obras que tinha em casa, colocou numa sacola e partiu para o ônibus onde trabalhava, um circular em Sobradinho II. Ali, a idéia se espalhou. Numa caixa de papelão perto da roleta, ele colocou os livros. E um cartaz: Projeto Cultura no Ônibus. Ninguém entendeu nada. ;É pra pagar?;, perguntavam alguns. Não era pra pagar. Era pra ler, pegar emprestado, com o compromisso de devolver, e pegar mais. Tantas vezes quisesse. Incansavelmente, ele explicou sua idéia para os passageiros da sua linha. E pedia doação. Quem tivesse algum livro em casa, e não mais quisesse, ele aceitaria.

A novidade se espalhou. Em poucos meses, havia centenas. De todos os tipos, gêneros, gostos. Até gibis. E o povo começou a ler, levar para casa, trocar. Falar de poesia, comentar sobre histórias. Nem a confusão do ônibus lotado tirou a vontade de ler dos passageiros. A linha de Antônio tornou-se a mais disputada do pedaço. Há sete meses, porém, o cobrador foi transferido para a linha 82, que parte do Núcleo Bandeirante com destino ao Setor de Abastecimento e Armazenagem Norte (Saan). Ali, recontou sua história. E mais livros chegaram. A casa modesta onde mora de aluguel com a mulher, filho e uma enteada não coube mais tanta coisa. Ele teve que alugar um barraco para guardar o acervo que não parava de chegar. Todo mês, desembolsa R$ 120, do salário de R$ 569, para pagar o aluguel do lugar onde está seu tesouro. Hoje são mais de 4 mil livros.

Feito de sonho
Na nova linha, o cobrador Antônio da Conceição Ferreira, maranhense de 36 anos e há 13 morando no DF, teve mais uma boa idéia. Deixaria as obras mais visíveis, para que o passageiro pudesse vê-las melhor. Não perdeu tempo. Foi a uma banca de jornal da Rodoviária do Plano Piloto e pediu a uma funcionária que lhe desse um porta-jornais de plástico. Contou o que pretendia fazer. Saiu dali com cara de menino que ganha presente de Natal.

No dia seguinte, levou o porta-jornais para sua biblioteca ambulante. E o pendurou depois da roleta, logo atrás do validador de cartões eletrônicos. E o anúncio, numa folha A4, impressa em computador, o nome do seu projeto. O povo que ainda não conhecia a intenção do cobrador se indagava: ;O que seria aquilo?; Outros se aproximavam. E ele explicava tudo mais uma vez. Aos poucos, as pessoas foram entendendo. E descobriram que não precisariam pagar nada para ler livros, trocados todo dia. A disputa foi grande. As viagens nunca foram tão concorridas. A linha 82 virou atração. Há quem a espere com ansiedade.

Quem pega o livro assina uma ficha, que vira o cadastro. Lá, consta o nome do leitor e o telefone. Nada mais. Prazo de devolução? ;Varia de acordo com a capacidade de leitura de cada um;, ele explica. Em um ano, não mais que 10 livros deixaram de ser devolvidos. ;Jamais vou deixar de levar meu projeto pra frente porque um ou outro não devolveu. Os honestos não podem pagar pelos não honestos;, reflete o cobrador ; filho de um lavrador e uma catadora de coco babuçu. Antônio deixou os confins do Maranhão atrás de um sonho: estudar e ;ser alguém na vida;.

Aqui, entretanto, por causa das dificuldades financeiras, ele ainda não conseguiu terminar o ensino médio. Precisou trabalhar para sobreviver. Foi auxiliar de serviços gerais, balconista, vendedor e, há 8 anos, virou cobrador. Levou o desejo de estudar para dentro do ônibus. Realiza-se quando observa um passageiro extasiado com seus livros. ;Quem lê tem uma visão mais crítica das coisas, do mundo e da vida. Aí, se liberta;, ele filosofa. E, assim, durante seis horas e meia por dia, seis dias por semana, faz o que mais gosta: leva conhecimento a quem, na maioria das vezes, não teria condições de comprar um livro.

Início da tarde de sexta-feira, 12h40. O Correio acompanhou uma viagem da linha 82. Nela, o cobrador Antônio e o motorista Aurélio Marcos Araújo, 35. Saída: Terminal Rodoviário do Núcleo Bandeirante. Destino: Saan. Tempo total da viagem completa: 1h30. E vamos nós. Logo na Metropolitana, bairro próximo ao terminal, sobem mãe e filha. Ambas passam na roleta. Sentam-se atrás do porta-livros. Larissa, de 7 anos , vê uma revistinha da Mônica. Não se contém. Vai até a biblioteca e pega o gibi. Encanta-se com a historinha. A mãe, Renata Oliveira, 25, elogia a idéia do cobrador: ;Ajuda a viagem passar logo;.

E o ônibus segue. Chega à Candangolândia. Francisca Santos, 28, entra. Auxiliar de serviços gerais numa empresa do Saan, a moça estava ansiosa para pegar aquela linha. E havia motivo especial. Na quarta-feira, pediu ao cobrador que lhe arrumasse um bom romance. Antônio foi ao seu acervo e trouxe Momentos de encanto, de Helen Bianchin. Francisca passará todo o fim de semana lendo. ;Ele (Antônio) faz uma coisa que eu nunca tinha visto igual;, avalia. E confessa: ;Quando eu pegava o ônibus, só queria dormir. Agora, só penso em ler, ler muito;.

Dedicação à cultura
Aniversariante da sexta-feira, a auxiliar de teleatendimento Adriana Leandro, 30, também embarcou na linha 82. E, grata ao cobrador que lhe devolveu o prazer da leitura (em pouco mais de três meses leu oito livros), emocionou-se: ;Sou fã desse homem. Ele faz esse trabalho e não ganha nada por isso. Faz pela dedicação à cultura;. Naquele dia, Adriana levou Quando é preciso voltar, de Zíbia Gaspareto. ;Há um ano procurava por esse livro. Ele conseguiu pra mim. É meu presente de aniversário;, comemora a leitora.

O estudante Fernando Augusto Salvador, 17, é grato a Antônio. Morador de Santa Maria, ele desce na Candangolândia para seguir na linha 82, que o leva ao Saan, onde faz estágio. Numa dessas viagens, descobriu os livros do cobrador. Pirou ao encontrar O pagador de promessas, de Dias Gomes. ;Adoro ler. Este ano, já li mais de 100 livros. O que esse cara faz não tem preço, ainda mais num país onde quase ninguém lê;, elogia Fernando.

E a viagem continua. O tempo urge. Uns entram, outros descem. A vida sacoleja. Mas a biblioteca sobre rodas está ali, à espera de um leitor. De alguém que possa sonhar por meio de letras. Assistindo a tanta catarse, a tantos renascimentos, Antônio admite, com os olhos marejados: ;Esse é o meu sonho. Ver todo mundo lendo, pensando melhor. Queria poder colocar livros em todos os ônibus do DF;. E planeja, convicto: ;Ano que vem, vou voltar aos meus estudos. Em 2010, se Deus quiser, pretendo entrar na faculdade de biblioteconomia, da UnB;. Tem gente que passa pela vida. Há outros que edificam, transformam, realizam sonhos e são capazes de renascer. O cobrador que encheu um ônibus de livros e tem ajudado a mudar a vida das pessoas faz parte da segunda categoria.

Por uma causa
Quem puder doar livros e ajudar Antônio no projeto cultural pode ligar para 9195-5023.

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