postado em 20/11/2008 08:35
A simetria que Lucio Costa imaginou quando projetou Brasília desapareceu nas quadras 700 da Asa Norte. Na própria W3, uma das principais vias da cidade, puxadinhos foram erguidos em cima dos comércios. Há dezenas de construções improvisadas. Podem ser vistas desde a Quadra 704 até a 716 Norte. O aluguel barato leva famílias inteiras a viver nos cubículos que ficam sobre oficinas, restaurantes, bares e outras empresas. Quem mora perto, nas 900, reclama da bagunça.
As quadras 700 da Asa Norte não são destinadas à moradia, mas ao comércio. Com a alta demanda por lugares centrais para morar, no entanto, salas comerciais se transformaram em quitinetes no Plano Piloto. Só que as já existentes nos prédios de comércio não foram suficientes para a gana dos especuladores nessa parte da cidade, e as invasões aéreas prosperaram.
São de todos os tipos. Algumas, como na 704 Norte, parecem uma continuação do prédio comercial, mas a altura discrepante dos demais imóveis denuncia a irregularidade. A construção original só pode ter um pavimento acima da marquise. Embaixo, um imóvel de pé direito alto ou dois mais baixos. O puxadinho se caracteriza com o segundo pavimento acima da marquise.
Em várias quadras, a invasão se assemelha a uma cobertura ; área de lazer para a quitinete que já existe, com churrasqueiras e mesas de sinuca. Muitas são bem diferentes do prédio, como uma casa de madeira na 705 e um puxadinho todo de vidro na 712 Norte.
Na 713 há um conjunto inteiro com quatro, isso mesmo, quatro pavimentos. Na 716 Norte, última quadra, no prédio ocupado pelo sindicato dos policiais civis, uma grande construção cercada por grades simboliza a ilegalidade. A reportagem não foi recebida pelos diretores do sindicato nem pela maioria dos ocupantes dos puxadinhos, que temem represálias do governo.
Perto do trabalho
Com a garantia do anonimato, uma mulher de 47 anos que vive em um desses imóveis, na 710 Norte, falou ao Correio. Disse que está lá há quatro anos com o marido eletricista e três filhos em idade escolar. O imóvel, de 30 metros quadrados, tem dois quartos, sala, cozinha e área de serviço conjugados. As divisórias são de madeira. ;É pequeno, bem menor que a casa em que morávamos antes, no Recanto das Emas;, confessa ela. ;Mas o aluguel é barato e estamos perto do trabalho, da escola dos meninos, de tudo. Não gastamos mais em transporte, que é caro e ruim;, completa a dona-de-casa, que paga R$ 300 de aluguel e ainda se livra do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), já que, para o governo, o puxadinho nem existe.
A moradora sabe que vive em um imóvel ilegal, mas garante nunca ter sido procurada por agentes públicos. ;Os fiscais chegam para falar com quem está construindo. Minha casa está pronta há muito tempo. Acho que vai ficar assim mesmo;, acredita.
A publicitária Márcia de Araújo, 32, moradora de um prédio na 911 Norte, condena a propagação dos puxadinhos verticais. ;É uma coisa horrível esteticamente, um desrespeito aos que projetaram a cidade. Eu, que passo todos os dias por aqui, me sinto muito incomodada;, reclama. ;A região da W3 Norte sempre foi abandonada. Antes havia as agências de carro, que finalmente saíram. Agora, são essas oficinas, que causam uma bagunça imensa nas quadras, e os verdadeiros barracos acima dos prédios. A população espera ansiosa por alguma ação;, completa.
À Agência de Fiscalização do Governo do Distrito Federal (Agefis) cabe coibir abusos como o constatado pela reportagem ao longo de toda a W3 Norte. O órgão garantiu que autua e multa quem insiste em construir irregularmente nos comércios da Asa Norte, mas não informou quantas notificações expediu nem quantos imóveis ilegais existem nas quadras 700. A Agefis comunicou ainda que há um edital de licitação da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (Seduma) para contratar empresa que elabore um plano de preservação do conjunto urbanístico de Brasília. A abertura das propostas está marcada para 22 de dezembro. O estudo e as soluções ficarão para o ano que vem.
O que diz a lei
Os comércios das quadras 700 da Asa Norte não podem ter mais pavimentos porque isso fere as regras criadas pelo urbanista Lucio Costa na época em que Brasília foi projetada. Essas regras ganharam força de lei em 1992, pela Portaria nº 314 do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC), que atualmente é o Iphan. A portaria serviu de base para o tombamento da cidade como patrsimônio cultural da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco).
Riscos de sobrecarga
Além de feias, as construções acima de prédios podem ser perigosas. Há casos em que dois pavimentos extras foram construídos sem a autorização da Administração de Brasília, que garante não liberar alvarás de construção para esse tipo de obra. ;Temos uma situação de sobrecarga do imóvel, pois ele ganha mais andares que não foram levados em conta nos cálculos do projeto inicial. Isso é perigoso;, avalia o arquiteto e urbanista Frederico Flósculo, professor da Universidade de Brasília (UnB).
Segundo ele, a prática de construir fora dos limites é comum em todo o país, mas fica muito evidente em Brasília porque a cidade nasceu ordenada. ;Só que o governo fracassou em mantê-la assim desde a fundação. As invasões, principalmente dos comércios, são epidêmicas;, afirma o professor, lembrando dos puxadinhos de bares e restaurantes sobre áreas públicas. ;E é um mau exemplo porque, à medida que essas malfeitorias permanecem e o governo não reprime, outras pessoas são estimuladas a fazer o mesmo;, alerta o especialista.
Para o urbanista, regularizar a altura dos prédios nas quadras 700 da Asa Norte requer ações drásticas. ;Se compararmos à situação da cidade com um organismo com tumores, o tratamento tem de ser radical. É preciso acabar com o câncer todo para que o paciente viva. O governo deve se preparar para a guerra ou a cidade perde para a desorganização e nasce a cidade-cortiço;, conclui.
A demolição também é a solução para a superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no DF. Consultado pela reportagem, o órgão se posicionou contrariamente a qualquer tipo de tentativa de legalização dos andares extras na W3 Norte. A assessoria de comunicação do instituto informa que tem notificado alguns dos donos de comércio que aumentam a construção e que ainda espera um posicionamento do GDF, mas não descarta entrar na Justiça caso o problema não seja resolvido.