Cidades

Menino resistiu a preconceitos e se tornou desenhista de projetos arquitetônicos

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postado em 20/11/2008 08:44
Tarzan era o apelido do professor de educação física da 3ª série do Colégio Parisiense, uma escola particular do Rio de Janeiro nos anos 40. O homem era forte, alto, louro, como cabia a um rei das selvas. Havia um único aluno negro na sala. Chamava-se Willy, tinha 8 anos, era o filho único de Antônio Bezerra de Mello, motorista de táxi e de Carmem, dona-de-casa e bordadeira. E sobrinho único de tios maternos. ;Fui o menino mais paparicado do mundo;, conta hoje Willy, 65 anos depois do acontecimento que se segue. O professor de educação física pediu aos alunos que corressem em volta do campo de futebol. E só poderiam parar de correr quando ele determinasse. E Tarzan o fazia chamando cada um pelo nome: Pedro, João, Estefânia%u2026 ;Miquimba (em iorubá, termo depreciativo que pode significar, num xingamento, ;coisa; ou ;macaquinho;, pára!”, Tarzan ordenou olhando para Willy. ;Esse não sou eu;, disse para si mesmo o menino negro. ;Miquimba, pode parar!”. O garotinho continuou correndo e repetindo: ;Esse não sou eu;. Willy correu até que as pernas perderam as forças e ele caiu. Resultado: Tarzan lhe deu uma bronca e um castigo. Como dever de casa teria de preencher uma folha de papel almaço, da primeira à última linha, com a frase: ;Devo obedecer meus professores;, método pedagógico muito comum nos anos 40 e que duraria mais um bom tempo. Dona Carmem condoeu-se com a tripla humilhação do filho, o de ter sido chamado de Miquimba, o de ter levado uma bronca e ainda a de ter de cumprir um castigo. Mãe e filho temiam pela reação do pai, um negro orgulhoso da cor da pele que convivia com intelectuais nos bares do Rio de Janeiro e que tinha visto de perto a vida dos negros num dos países mais segregacionistas do mundo, à época, os Estados Unidos. ;Cumpra o castigo, entregue para o professor, mas se ele te chamar de Miquimba novamente, aja do mesmo jeito que agiu.; Filho e mãe recobraram as forças. E ela passou a noite bordando o nome do garoto no casaco que ele usava nos dias de frio. Na manhã seguinte, o aluno negro do professor louro chegou à mesa dele, entregou o castigo, apontou o dedinho para o bordado e disse: ;Este é o meu nome;. Orgulho e herança Willy Bezerra de Mello tem esse nome em homenagem a um grande amigo do pai, durante o tempo em que morou nos Estados Unidos. No início do século 20, Antônio Bezerra de Mello largou a cidade onde nasceu, Recife, para fugir de uma epidemia de varíola, tomou um navio às margens do Rio Capiberibe e passou 13 anos no país da Ku Klux Klan. Mas os filhos e oito dos nove netos de Willy têm nomes africanos. Os filhos: Kenya, Mali, Luena, e os gêmeos Ialê e Kwame. Além de cultivar o orgulho pela história da resistência dos negros às humilhações dos brancos, Willy sempre gostou de desenhar formas arquitetônicas (e mais tarde formas geométricas, além de figuras negras). Seu traço está em algumas das grandes obras de Brasília. Ele foi um dos desenhistas do Departamento de Urbanismo e Arquitetura da Novacap, desde o tempo do barracão construído onde hoje é o Palácio da Justiça. Detalhou projetos de arquitetura de dezenas de obras modernistas da cidade. Os banheiros do Congresso Nacional, por exemplo, saíram dos esquadros de Willy. Com a inauguração da cidade, o desenhista foi chefiar a fiscalização de obras da Novacap, depois trabalhou na Fundação Cultural. Quando veio para Brasília, em 1958, o menino que correu até cair já era um homem, tinha 23 anos. Deixou no Rio uma namorada firme, hoje sua ex-mulher, e uma mãe apreensiva: ;Onde é Goiás? Ninguém sabe onde é Goiás?;. Era longe. Depois de mais de três horas de vôo, Willy desceu no Aeroporto de Brasília e procurou por um carro da Novacap que o estaria esperando. Era um sábado, 15 de agosto de 1958. Havia alguns táxis, muitos jipes e um caminhão amarelo com a inscrição da empresa que administrou a construção de Brasília. Todos os passageiros encaminharam-se para a saída, entraram nos táxis e nos jipes e foram embora. ;Ficamos só eu e o caminhão. Eu digo: Bom, o jeito é pegar uma carona ir para um hotel e esperar segunda-feira.; Bom humor Procurou pelo motorista do caminhão que também estava meio atrapalhado. ;Estou esperando um gringo e o homem não apareceu;. Foi quando Willy desconfiou do que estava acontecendo: ;Como é o nome desse gringo?;. E o motorista: ;Um tal de Willy;. E o tal de Willy: ;É, eu estava esperando um carro, veio um caminhão. Você estava esperando um gringo, veio um negro. Desse jeito ninguém ia achar ninguém.; O artista plástico Olumello e o desenhista Willy são a mesma pessoa. Olumello (;seu Mello;, em iorubá) foi a composição que Willy encontrou para se livrar da inveja que tinha do nome africano dos filhos. ;Eu ia carregar nome de gringo pro resto da vida?;, pergunta o artista, meio brincando, meio exercendo seu infatigável ativismo negro. Desde menino, Willy fortaleceu as raízes africanas. Aos 12 anos, já pertencia à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, ordem religiosa criada entre os séculos 17 e 18 para proteger, sob o manto do sincretismo religioso, negros escravos e libertos. Ele e a ex-mulher, Lydia, são históricos militantes do movimento negro, primeiro no Rio de Janeiro, depois em Brasília. Do gosto pelo traço livre do risco arquitetônico, do fervor com que cultivou a herança cultural africana, da influência de Rubem Valentim e Athos Bulcão nasceu o artista plástico Olumello que, desde o 1º Salão de Arte Moderna de Brasília, participa de exposições coletivas e individuais. Sua obra está no acervo do Museu Afro, em São Paulo. Mas a maior parte dela ; bico-de-pena, colagem, tapeçaria, pintura em acrílico ; está nas paredes e nos armários de sua casa, no Guará 2. Olumello interrompeu, por ora, a sua produção. Está enfrentando um linfoma e, por conta disso, não quis se deixar fotografar sem barba e bigode. ;Não sou eu. Ninguém iria me reconhecer. Nem eu mesmo;. Por isso, a imagem que ilustra a página é a de um auto-retrato. Mas Willy reage bem ao tratamento. Sente-se um pouco cansado, depois das sessões, mas logo recupera as forças. E nunca perde o jeito forte de se expressar, apesar da indisfarçável timidez.

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