postado em 21/11/2008 09:26
Onze horas da manhã, céu nublado, quarta-feira. De longe, avista-se ela. De calça jeans, camiseta branca e tênis, está sentada ao lado de duas mulheres, nos fundos do galpão. Animada, a conversa parece render. Do que se trata, afinal? ;De uma rodada de negociação;, explica, assim mesmo, simplesinho, ao receber o visitante. Quem nos atende é Gislane Roberta Pereira Lisboa. Tem cabelos cacheados, 31 anos, fala com sotaque mineiro, sorriso fagueiro de moça jovem. Gislane já foi doméstica, passadeira e agora é diarista. Casou-se com um bilheteiro de ônibus, tem três filhos, estudou até a 6ª série, mora no Varjão e tornou-se, pelo voto das companheiras, a presidente da Central de Costura e Artesanato da cidade, entidade batizada pelo sugestivo nome de Girassol.
Aquelas duas mulheres sentadas em círculo são empresárias. A marca que representam é chique, conhecida na cidade. Elas foram àquele galpão no Varjão atrás de parceria com as costureiras. E o acordo foi selado. As mulheres da Asa Norte levarão as máquinas especiais, tecidos já cortados e demais acessórios. E as moças que moram naquele lugar ; tão perto e tão longe do Lago Norte ; entrarão com a mão-de-obra. Vão fazer todos os acabamentos. Tudo made in Varjão. Sim, ali mesmo, atrás do Lago Norte. Gislane é toda sorrisos. Primeiro contrato firmado, desde que a central foi criada, há 40 dias.
Essa é a história de um lugar que, aos poucos, se organiza. E tem dado à sua gente, pela primeira vez, mais uma comovente lição de cidadania. No galpão da Girassol ex-domésticas, diaristas, faxineiras, passadeiras, auxiliares de serviços gerais, artesãs, desempregadas e donas-de-casas estão em polvorosa. E começaram a sonhar com os pés nas máquinas e a cabeça nas nuvens. Todas viraram costureiras. Fizeram cursos. Foram avaliadas com rigor. Receberam diploma. E começaram a sonhar. Já pensam nos contratos, nas parcerias, nos novos projetos. Vislumbram suas roupas nas butiques da cidade: ;De associação vamos nos transformar em cooperativa;, acredita Gislane.
E essa história começa assim. Um dia, a Administração do Varjão decidiu construir um galpão para abrigar cursos profissionalizantes. Queria qualificar suas gentes. O Sebrae se juntou, trouxe professora do Senai. Alugou as máquinas profissionais. E o curso de costura foi montado, numa creche, enquanto o galpão era construído, e chegaram as mulheres. Eram 47 no início, 44 foram até o fim. Venceram 37 dias úteis de aprendizado, 150 horas de trabalho. Nasciam as mais novas costureiras do Varjão.
E o grande momento se aproximava. Toda associação, constituída com CNPJ, estatuto e regimento interno, precisa ter um presidente. As costureiras sabiam disso. E resolveram eleger sua representante pelo voto. A disputa foi acirrada e o resultado, inesperado: Gislane e a artesã Maria dos Reis empataram. Como resolver? Outra votação, sugeriram algumas. Gislane, entretanto, surpreendeu as companheiras. Disse que Maria tinha mais experiência e, portanto, deveria ser a presidente. A artesã devolveu: ;Você merece ser a nossa líder, lutou muito para chegar até aqui. Eu tô aqui pra somar;. A diarista corou. ;Passei três dias sem dormir, só pensando na responsabilidade que teria daqui pra frente. Aí perguntei pra Deus se era da vontade dele ou não;, ela lembra. Ainda insone e assustada, decidiu que se agarraria àquela chance. ;É a minha oportunidade de começar a mudar minha vida;, reconhece.
Histórias de vida
As mulheres do galpão de costura nunca estiveram tão felizes. Nem o drama da hemodiálise que enfrenta três vezes por semana tirou o brilho dos olhos de Maria Margarete Ferreira. Mineira de Montes Claros, 48 anos, um filho paraplégico, Maria Margarete é uma das costureiras do Varjão. ;Antes, não tinha coordenação motora, errava muito. Agora, costuro em todas as máquinas daqui;, ela vibra, mostrando as recentes conquistas em pedaços de pano. E faz planos de ver aquilo crescer. ;Vamos ter muitas encomendas. Nosso trabalho vai longe;.
A baiana e ex-doméstica Judite Alves, 43, ensino médio completo, sabe bem o que já ouviu por morar no Varjão. E sentiu o preconceito pelo endereço. ;Aqui, as pessoas acham que moram só as domésticas e os jardineiros do Lago Norte;, ela conta. E continua, empolgadíssima: ;Agora, vamos provar que somos capazes de fazer muita coisa, de criar, produzir, ser diferente;. Se Judite quer produzir coisa diferente, a goiana Germina de Deus Rosa, 37, ex-passadeira, quer chegar à faculdade. ;Vim pro curso de costura porque quero aprender uma profissão, melhorar meu currículo e, claro, minha situação financeira;, explica. E diz o que fará depois que terminar o ensino médio: ;Meu sonho mesmo era fazer a faculdade de jornalismo. Gosto de perguntar, ouvir, saber das coisas. Vou tentar. Se não der, faço psicologia;, diz a ex-passadeira. Quando está costurando, os sonhos de Germina voam junto com ela. Transportam-na. ;Aí, eu saio daqui do galpão. Viajo. Penso alto demais...;
A piauiense Kátia Maria Ciro, 37, ex-auxiliar administrativa, estava desempregada havia um ano. ;Foi quando apareceu o curso de costura. Não pensei duas vezes. É minha chance de ser autônoma, trabalhar para mim mesma. E me sentir capaz de novo;, avalia. E todas comemoram. Luicimar Leite, 26, cravou: ;A associação já deu certo. Ganhamos essa oportunidade e vamos pegar ela com garra;. Aloíde Batista Oliveira, 25, de tão confiante com a nova profissão, voltou a estudar. Termina a 4ª série. ;Fé eu tenho. O resto vou correr atrás.;
Profissionais de verdade
E a presidente, onde anda, minha gente? Está lá, no galpão, andando de um lado para o outro, supervisionando, ouvindo uma costureira, atendendo outra. Vê o que falta, incentiva as companheiras. Participa de reunião, de ;rodada de negociação;. E ainda precisa manter o grupo unido. E também costura. As mãos que limpam casas alheias agora aprendem como costurar roupas. Com entusiasmo, ela assimila o que a instrutora do Senai, costureira Tereza Alves de Sousa, 50, ensina.
A diarista orgulha-se dos avanços na nova profissão. A professora entrega: ;Elas todas têm muito talento. No começo, não tinham quase nenhuma noção de coordenação. Foram treinando, mostrando vontade. Nossa, já me emocionei demais aqui dentro;. E promete: ;Vamos formar profissionais de verdade;. Gislane ouve e se comove: ;Todas nós aqui fizemos disso um projeto de vida. Eu deixei meu emprego de cinco anos, com carteira assinada. Nossa esperança é que tudo dê certo, que a gente cresça e consiga viver do nosso trabalho.;
As máquinas fazem barulho. Pés e mãos costuram sonhos, desejos e chances de vida melhor. Maria Margarete, Judite, Germina, Kátia, Lucimar, Aloíde e Gislane. Apenas sete das 44 mulheres que apostaram numa transformação. E foi assim que se meteram naquele galpão com a vontade de mudar o lugar onde vivem. Pouco a pouco, sem imaginar, mudaram a si mesmas. Enxergaram-se. E querem ir muito mais longe. É uma revolução ; feita de linhas, agulhas, tecidos, moldes, tesouras e esperança. Tudo ali, naquele lugar escondido atrás do Lago Norte.
Causa boa
A Associação Girassol precisa de parcerias e doações. Contato: Gislane ; 9607-5636