Cidades

Bailarinos que estudam na capital foram classificados para concorrer a prêmio

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postado em 25/11/2008 08:00
Histórias de faz-de-conta sempre começam assim: ;Era uma vez...; Esta também começará dessa forma. Só que não é faz-de-conta. É real, daquelas que sangram e produzem calos. Saltam, voam, parecem flutuar. Embora real, é igualmente feita de sonhos. Uma menina de 10 anos. Um menino de 11. Pobres, um dia sonharam com a dança. Ele, filho de uma faxineira. Ela, de uma vendedora de flores. Um dia, longe daqui, em Cabo Frio, no Rio de Janeiro, eles souberam que havia um espaço onde crianças como eles, sem nenhum recurso, poderiam fazer aulas de balé. E não pagariam nada por isso. Correram pra lá. A mãe dela vibrou. Contou na vizinhança. O pai dele, separado da mãe, contrariou-se: ;Isso não é coisa de homem. Filho meu não faz isso, não;, ralhou. Não entendeu. Fechou a cara. Até hoje não entende. Nunca viu nem quer ver o filho dançar. O menino insistiu. Engoliu a seco a incompreensão do pai. E ainda menino teve que crescer. Fortaleceu-se. Percebeu-se capaz. Até de enfrentar o preconceito. De collant, sapatilhas e coque nos cabelos, a menina se sentiu princesa. Ano que vem, eles pretendem chegar a Nova York para participar do Youth America Grand Prix (YAGP), uma das mais disputadas seleções de bailarinos do mundo. Lá, estarão olheiros louquinhos para levar os novos talentos às grandes companhias internacionais. A menina e o menino estão entre os 30 melhores bailarinos do Brasil que tentarão essa chance. Hoje, essa história continua em Brasília, bem longe do Rio de Janeiro. A menina e o menino vieram de lá, no início do ano. Treinam, de segunda a sábado, sob o comando da coreógrafa e bailarina Regina Corvello, 44 anos, casada, dois filhos. Agora, sim, essa história poderia ser uma daquelas de faz-de-conta. A mãe de Regina, Ofélia Corvello, bailarina formada pelo Teatro Municipal do Rio de Janeiro, inaugurou algumas academias em Brasília, em meados dos anos 1970. Mas um dia deixou a terra de JK e voltou para Cabo Frio. Regina ficou aqui, tocando outros projetos envolvendo a dança. No Rio, Ofélia fundou o Ballet da Comunidade, para crianças carentes. E tornou-se presidente dele. O sonho dela era levar a dança a meninos e meninas que muito provavelmente jamais teriam acesso a ela. As crianças foram chegando. Vieram mais de 300. E o que era impossível aconteceu: meninos e meninas, na ponta dos pés, passaram a acreditar em sonhos. David Motta Soares e Carollina de Souza Bastos logo se destacaram. Meses depois, dançando juntos (pas-de-deux), começaram a ganhar os primeiros lugares em festivais locais. Vieram as primeiras viagens, sempre feitas com muitas dificuldades financeiras. E a dança se instalou de vez em suas vidas. Ele se agarrou àquilo como renascimento. Talvez a única chance de mudar a vida. Ela, que ainda brinca de bonecas, sonhou acordada, pensando em palcos gigantescos. Em teatros lotados. Tudo muito longe de Cabo Frio. A mudança Professora de balé do Colégio Perpétuo Socorro, no Lago Sul, Regina foi visitar a mãe. Era o fim de 2006. Lá, ao chegar à sede do projeto, deparou-se com aquelas duas crianças dançando. Bailarina experiente, não teve dúvida. ;Fiquei admirada. Disse à minha mãe: ;Eles são bons e talentosos demais. Deixa eu levá-los para Brasília. Quero prepará-los para os concursos;. Ofélia gostou da idéia. Mas era preciso que os pais deixassem seus filhos viverem longe de Cabo Frio. Viagem autorizada. David e Carollina partiram. Brasília seria mais um sonho. Os dois ficaram hospedados na casa de Regina, na 303 do Sudoeste. A família da bailarina aumentou. ;Ela virou a nossa mãe;, o menino diz, com gratidão. Os meninos estudam na mesma escola onde Regina dá aulas de balé. Ela faz a 4ª série. Ele, a 5ª. Bem alimentados, cresceram. Ganharam corpo. Ela está com 1,36m e pesa 34kg. Ele, 1,48m e 36kg. E começaram a participar dos primeiros espetáculos. Em abril, dançaram na Sala Martins Penna, no Teatro Nacional, no Dia Internacional da Criança. Em agosto, na comemoração dos 30 anos do Colégio Militar, eles fizeram uma apresentação. Ana Botafogo, umas das mais importantes bailarinas da história do país, estava na platéia. Eles não sabiam. Ao fim da apresentação, ela se levantou e os aplaudiu. Depois, fez questão de cumprimentá-los e lhes disse: ;Quero ver vocês dois dançando em outros lugares;. O menino e a menina choraram como crianças de verdade. Em setembro, eles retornaram a Cabo Frio para participar do Festival Internacional de Dança da cidade. Após o espetáculo, a dupla foi ovacionada. Os meninos levaram o primeiro prêmio. Carollina ainda ficou o título de bailarina revelação. Ainda no mesmo mês, fizeram outra viagem. E mais um sacrifício. Regina teve que desembolsar cerca de R$ 4 mil para chegar a Indaiatuba (SP). ;Foram despesas com passagem aérea, alimentação, hospedagem e inscrição no concurso;, ela explica. América David e Carollina partiram. Aquela viagem seria, talvez, a mais importante de suas vidas. Eles iriam participar do Grand Prix (YAGP) Brasil. Havia mais de 150 participantes, bailarinos de 9 a 19 anos de todo o país. O menino e a menina seriam testados, avaliados rigorosamente como gente grande. Não podia haver erro. Entre os jurados, a exigente Tara Mitton Catão, diretora e professora do The Harid Conservatory, de Nova York. E lá estavam as duas crianças do Ballet da Comunidade. Dançaram juntos, sob orientação da coreógrafa Regina, a fiel protetora. Ao som de Beyond the sunset, de Enrique Chia, dançaram Meu primeiro amor, peça concebida e coreografada por Regina. David e Carollina deslizaram. Voaram no palco por dois minutos e quarenta e cinco segundos. Tara, a jurada temida, bateu palmas de pé. E repetiu, empolgada: ;Bravo! Bravo!”. Virou-se para Regina e pediu: ;Não mude nada na coreografia;. O menino e a menina saíram dali entre os melhores bailarinos do país. Nova York os espera para a seletiva final, onde estarão os melhores do mundo na categoria deles. A viagem será em abril. Mas há um problema ; eles não têm como chegar lá, não há dinheiro para as passagens nem hospedagem. Regina se entristece: ;Já não sei mais o que fazer. Bati em todas as portas que você possa imaginar. Não há quem queira patrocinar;. E diz, comovida: ;É a vida deles, o sonho de duas crianças com muito talento e que podem ir muito longe;. Enquanto isso, cheios de esperança, David e Carollina dançam. Ensaiam de segunda a sábado, às vezes por até quatro horas. Ele revela: ;É isso que quero fazer pro resto da minha vida. Nem os preconceitos que enfrentei e ainda enfrento vão me fazer desistir. Dançando, eu me sinto voando;. Ela emenda: ;Me vejo primeira bailarina de uma grande companhia. É essa carreira que escolhi;. A música ecoa naquela sala da Fundação Athos Bulcão. De tão bela, leve e graciosa, a menina parece uma bailarina de caixa de música. Apesar de franzino, ele é preciso, correto, firme, como bailarinos devem ser. Os dois ensaiam Meu primeiro amor. Eles voam. Levitam. Ele a segura. Eles se encantam e nos encantam. No fim da apresentação, ela cai sobre os braços dele. E os dois parecem enamorados. David e Carollina se emocionam. Não há, além da professora, do repórter e da fotógrafa, mais ninguém naquela sala cheia de espelhos e barras. Ainda assim, é como se os aplausos com toda a intensidade de um teatro lotado invadissem aquele lugar. E paralisassem tudo, como no último ato do espetáculo. Talvez sejam esses os aplausos dos deuses. PELA ARTE Quem puder ajudar os bailarinos a chegar a Nova York pode ligar para Regina ; 9694-5653

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